Sabe o santista fanático quando via o Pelé nos anos 1960? As tietes dos Beatles num show? Alguém de Chicago recebendo a visita de Michael Jordan? Um amante da 7ª arte sentado no cinema ao lado de Ava Gardner?
Assim estava, em 1999, quando fui conhecer Millôr Fernandes no apartamento carioca do geólogo Luiz Gravatá, onde em diversos eventos o anfitrião me apresentou a intelectuais brasileiros tão talentosos e importantes quanto os maiores astros mundiais do futebol, do basquete, do cinema e da música. Esse é o time do Millôr no panteão.
Garrincha, que entortava os joões como Millôr driblava a hipocrisia, tinha alegria nas pernas. Naquela noite de Ipanema, eu tinha apenas tremor. De repente, não mais que de repente, brotou ali o pensador que aprendi a admirar em O Pasquim, O Cruzeiro e Veja. Havia conhecido centenas de autoridades e celebridades, mas nenhuma do nível de Millôr, que estreou em 16 de agosto de 1923 e saiu de cena em 27 de março de 2012. Ou seja, logo depois da Semana de Arte Moderna e muito antes da hora.
Todos no ambiente eram seus fãs, mas em Millôr a grandeza chegara a tanto que se equiparava aos presentes e se mantinha o gigante que permaneceu na ativa publicando por quase 8 décadas. Espécie de firmamento sem estrelismo. Desenhos e orações saíam tão perfeitos que dava um trabalhão danado selecioná-los para antologias, mesmo para extensas como “A bíblia do caos”.
A lista de profissões variou bastante, porém, pode ser resumida a uma, humorista, se Shakespeare também for tratado simplesmente como humorista –atributo, de fato, comum a ambos. Exagero comparar o guru do Méier com o bardo de Stratford-upon-Avon? Não, engrandecimento dos 2.
Quando surgiu o Twitter, agora rebatizado de X, sabia que Millôr tiraria literalmente de letra a limitação de 140 caracteres. Não deu outra. Brilhou na mídia social. Aliás, a internet continua seu reino. Digita-se o nome e logo surge o turbilhão de máximas, cada uma melhor que a próxima.
Não o imagine assim, piadista com gracejos na ponta da língua, à moda dos antigos programas de TV ou dos atuais comediantes de stand-up. Millôr participava de congresso literário no Rio Grande do Sul quando o chamaram ao palco para um pronunciamento. Encantou a plateia ao elogiar a democracia e defender os direitos humanos. Aplaudido, revelou que acabara de ler o discurso de posse de Garrastazu Médici na Presidência da República.
Moral, que era como Millôr terminava suas fábulas fabulosas: “Não se empolgue com as palavras, pois nem sempre representam a realidade”. No caso, aquelas loas à democracia e aos direitos humanos redundaram no horror do AI-5.
Textos sobre Millôr costumam conter mais frases dele que do sujeito que assina. Isso se chama respeito ao leitor, ainda não demonstrado neste artigo. Está em tempo:
“O pior abutre é o desespero”;
“O sol não brilha sobre os mal-amados”;
“Morrer é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois”;
“Quando você estiver dando com os burros n’água procure se aliar aos burros secos”;
“Quem não lê é mais analfabeto do que quem não sabe ler”;
“Hay gobierno? Soy contra. No hay gobierno? También soy”;
“Anatomia é essa coisa que os homens têm, mas que nas mulheres fica muito melhor”;
“Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos muito bem!”;
“A melhor maneira de demonstrar que você é um homem de extraordinário bom senso é não acreditar nisso”;
“O gênio do ser humano não é o talento. É a bondade. (Mas só vi bondade uma vez, tem muitos anos)”;
“A boca é o aparelho excretor do cérebro”;
“O fato de uma pessoa ser grande autoridade em algum assunto não elimina a possibilidade de acertar de vez em quando”.
Viu a falta que ele faz? Já imaginou a descrição do embate Lula X Bolsonaro? Como ficaria em seu traço o hacker depondo à CPI? Não perdoava os políticos:
“Em política, o que te dizem nunca é tão importante quanto o que você ouve sem querer”;
“Na hora da fome todo revolucionário acaba aceitando uma boa sopa reacionária”;
“Conheço pessoas que pensam ter o ativismo de Guevara e a filosofia de Marx e têm apenas a asma de Guevara e os furúnculos de Marx”;
“Vocês me perguntam por que se luta tanto pelo poder. Ah, filhos, porque o ar é a condição principal da vida. Daí todos quererem ter um ar importante”.
Ninguém definiu tão bem o Brasil:
“Se isso tudo não for um pesadelo, este país vai mal”;
“No momento em que aumentam as nossas descobertas arqueológicas fica evidente que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem”;
“Político é um sujeito que convence todo mundo a fazer uma coisa da qual ele não tem a menor convicção”;
“Deus projetou o Brasil como uma sala de estar. Mas os proprietários preferiram usá-lo como depósito de lixo”;
“Este é o país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo. Caos não falta”.
Vice-campeão mundial de pesca de atum e inventor do frescobol, Millôr não praticava o esporte do elogio. Menos ainda o auto:
“Quando eu nasci os obstetras me acharam perfeitamente normal. Mas os designers balançaram a cabeça”.
Viu que se Pelé, os Beatles, Michael Jordan, Ava Gardner e Garrincha fossem magníficos para escrever e desenhar como em suas atividades teriam ficado entre Millôr e Shakespeare, não necessariamente nessa ordem? Ainda duvida? Leia a Bíblia. A outra, “A bíblia do caos”. Se persistir na hesitação, o jeito é ir à Capela Sistina do filósofo:
“Chegou ao limite da própria ignorância. Não obstante, prosseguiu”.
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