É urgente retomar o paraíso entregue a bandidos, estejam eles fora ou incluídos na folha de pagamento do Estado, escreve Demóstenes Torres
O Cristo Redentor já viu muita coisa do alto do Corcovado desde que se encarapitou no morro, em 1931. Assistiu, por exemplo, à saída dos Poderes rumo ao centro do país. O Rio de Janeiro ter deixado de ser a capital da República intensificou a Marcha para o Oeste. O Brasil virou-se para o interior e se integrou. Pronto, só Jesus salva o que ficou. E não foi pouca coisa.
O Poder360 mostrou 4 capas da revista britânica Economist com a estátua –decolando acima das nuvens da economia (2009), caindo depois de estragar as perspectivas otimistas (2013), de braços erguidos a pedir socorro (2016) e tomando oxigênio (2021).
Na riqueza e na crise, na saúde e na doença, o mundo considera o casamento perfeito o Rio ser a capital brasileira. A próxima capa da publicação deveria ter como foco um novo SOS, agora relativo à violência.
Saiu neste semestre o anuário do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), baseado em dados de 2022. Em 2021, a cidade do Rio de Janeiro teve 1.306 mortes violentas intencionais, sendo:
- 792 homicídios dolosos (há vontade de matar);
- 38 latrocínios (o bandido mata para roubar);
- 18 lesões seguidas de morte (queria ferir, mas matou);
- 25 feminicídios;
- 10 policiais assassinados em confronto; e
- 458 pessoas mortas por policiais.
Em 2022, foram, respectivamente, 1.319, 827, 38, 10, 39 e 444.
Com base em informações de 2019, um grupo de pesquisa liderado por UFF (Universidade Federal Fluminense) e USP (Universidade de São Paulo) traçou o Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro. Dos 1.200 km² do município, míseros 24.000 m² não estão controlados por milícias, tráfico ou disputa de facções. Menos de 2% do território! Se o Rio inteiro fosse o campo do Maracanã, as autoridades mandariam unicamente na meia-lua das grandes áreas.
Ainda assim, para o FBSP, as 4 cidades mais violentas do Brasil são Jequié, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho e Camaçari, todas na Bahia. Entre as capitais, a pior seria Macapá. Como se ocorressem mais crimes no Marco Zero do Equador que nas praias da zona sul carioca. Pânico fosse trafegar por Jequié, paz na Cidade de Deus e tranquilidade no Jacarezinho.
Não é por falta de ação. Tenta-se tudo, da omissão à brutalidade, mas o crime continua imperando. Uma luz seria o Rio voltar a ser capital, sem os moldes de antes.
O professor Dalmo de Abreu Dallari sugeria o retorno do Supremo Tribunal Federal, que ali esteve em 4 prédios belíssimos, 1 século no Solar do Marquês do Lavradio. Em sua coluna na BBC em 2009, Ivan Lessa definiu: “A capital do Brasil é o Rio de Janeiro (no verão), Buenos Aires (no inverno)”.
Dezenas de artigos e até livro contém sugestões de 1) os Três Poderes voltarem; 2) transformar o Rio numa cidade federal, um distrito autônomo, com governo próprio, sem depender do estadual; ou 3) deixar em Brasília o Congresso e o Judiciário, restabelecendo o Executivo.
Nada disso seria novidade. A África do Sul tem 3 capitais, uma para cada Poder. Na vizinhança, Bolívia e Chile estão com duas cada. Berlim é de um lado da Alemanha e a Corte Constitucional em Karlsruhe, do lado oposto. Outros 10 países contam com mais de uma. Todavia, nosso caso é peculiar. Nenhuma outra povoação tem influência num continente como o Rio, desde a fundação, em 1565, sendo ou não distrito federal, condição que exerceu de 1763 a 1960.
O Rio povoa o Brasil de vozes, letras, teatro, sons, jeitos e trejeitos, dribles, gírias, artes plásticas e cênicas, jornalismo, alegria, linguística, moda, economia e economistas, costumes, encrencas e 1/3 do poder federal, quase o mesmo número de servidores públicos da União que Brasília e as sedes nacionais de BNDES, Petrobras, Fiocruz, Inmetro, Funarte, Casa da Moeda, Inca, COB (Comitê Olímpico Brasileiro), CBF (Confederação Brasileira de Futebol), além de 16 hospitais, 2 museus e centenas de repartições menores do governo central.
Em matéria de História, a vivida no Rio só não é mais fantástica que a geografia. Foi capital de reino que se estendia por 5 continentes, uma das maiores áreas do mundo em todos os tempos. Derrotou Napoleão antes de Moscou. Palco da conquista mais memorável, a da Independência, cujos documentos aportaram às margens plácidas do Ipiranga já assinados no Rio pela 1ª mulher a chefiar a administração pública brasileira, Leopoldina da Áustria.
Um lugar único assim merece o que houver de melhor. Não é o que ocorre. As gestões estaduais conseguiram envergonhar aquele Homem do alto do Corcovado. Retrocede-se à Regência Trina, milícia–tráfico–banda podre das polícias. Perderam a alcunha de marginais, pois sequer agem à margem, estão entranhados em tudo, num pacto das forças regulares com o delito. O novo normal é o velho caos.
No tudo que já se tentou no combate à criminalidade falta o peso institucional. As Forças Armadas tiveram chance, mas nunca de solucionar. Um espasmo do comandante-em-chefe e tudo o que se dizia sólido se desmancha. Foi testado um ou outro batalhão. Se a instituição Exército Brasileiro ocupar ruas e becos, certamente eles se tornarão seguros.
É urgente retomar o paraíso entregue a bandidos, estejam eles fora ou incluídos na folha de pagamento do erário. A saída não está no Galeão, não pode ser temporária, não deve ser com o Estado e suas estruturas apodrecidas, nem reduzir a intervenção a assassinatos, os cometidos e os evitados. Forças de segurança bem treinadas, equipadas com tecnologia de ponta, remuneradas à altura e honestas vão triunfar sobre as máfias, sejam de facções, poder oficial ou paralelo.
Onde estão esses milagres que nunca aparecem? Nos mais de 50.000 integrantes da Marinha ancorados no Rio de Janeiro. Nos mais de 100 mil do Exército, sem deixar as fronteiras a descoberto. Uns 50.000 dos 70.000 da Força Aérea. Leva para lá e comanda direito que os ótimos resultados vão surgir.
O contingente de 200 mil é 800% maior que o enviado para a 2ª Guerra Mundial. E agora para uma só cidade. Uma! Uma cidade só. Além deles, policiais federais e rodoviários federais. Intervenção federal de 10 anos nas polícias estaduais, renovável por igual período, mostraria com quantos se pode contar. Não teria prefeito, mas governador. No caso atual, de preferência com Eduardo Paes eleito, para repetir na capital do país o aplaudido trabalho que empreende na capital carioca.
O Brasil já virou a chave quanto aos extremos, a visão romântica sobre o crime versus a guerra perdida do estilo de atirar antes e perguntar depois. Não adianta entrar em comunidade matando a população. Tem de entrar matando a fome. A começar pela fome de conhecimento, tecnologia, formação, ensino profissionalizante e saúde de qualidade. Em resumo, o Cristo Redentor abençoa lá de cima e gente séria resolve aqui de baixo.
A classe política, a do Rio no meio, amontoada em Brasília, se acomoda e ninguém cobra porque não há acesso. A população, longe do Plano Piloto, sofre sem descobrir a quem reclamar. Solução existe. E linda. A posse do presidente da República no Rio daria uma bela capa da Economist.
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