Dor de cotovelo cada um sabe onde sente, mas a maioria é no lado esquerdo do peito
Quando o avião caiu com a cantora Marília Mendonça, em Minas Gerais, o Brasil se descobriu órfão. Ou um país de desempregados, já que ela e as gêmeas Maiara e Maraisa eram “As patroas”.
Do metido a intelectual ao analfa de mãe e beto de pai, do freguês de restaurante estrelado ao frequentador de botequim pé-sujo, do bilionário ao biscateiro, do lulista ao bolsonarista, todos lacrimejamos naquele 5 de novembro de 2021.
Sofremos no 31 de janeiro de 1973 com o acidente de carro que matou Evaldo Braga no Rio de Janeiro como Portugal lamentou a morte da fadista Maria João Quadros, em 8 de dezembro de 2023.
O maior cortejo da história do Brasil foi o do piloto Ayrton Senna, há exatamente 30 anos, com 3 milhões de tietes se despedindo pelas avenidas de São Paulo, um terço da população. Mas perde em número para a Marília Mendonça egípcia, Umm Kulthum, cujo funeral na década de 1970 levou às ruas do Cairo metade de seus 8 milhões de habitantes.
Nós, os fãs, padecemos com a perda dos ídolos, porém eles nos fazem chorar a cântaros quando estão vivos. Observe as letras. “Carmen”, a ópera do francês Georges Bizet, poderia ter sido obra de algum compositor de sertanejo universitário.
Música de dor de cotovelo? Cada um sabe onde sente essas coisas, a maioria é do lado esquerdo do peito. O Anuário da Cerveja (PDF – 27 MB), publicação do Ministério da Agricultura com o Sindicerv, a entidade representativa do ramo, mostra que a quantidade de cervejarias subiu de 1.729 em 2022 para 1.847 em 2023, produzindo mais de 16 bilhões de litros com e sem álcool.
O combo cerveja e boteco só se completa com o som adequado. Samba? Pode ser, mas qual? Tango? Mesma dúvida. Bolero? Idem. O ritmo do coração tem mais a ver com a letra que com os acordes. É o que antes se chamava balada romântica, ia de Roberto Carlos a Manolo Otero, lágrimas a molhar o rosto como no “Fado do marinheiro”, do cancioneiro popular de Portugal:
“Caiu a sorte maldita
No melhor moço que havia”.
Todos somos candidatos ao cargo de vítima. Os letristas nem sempre disfarçam, como em “50 reais”, que bombou na voz da minha vizinha de prédio Naiara Azevedo:
“Não sei se dou na cara dela ou bato em você
Mas eu não vim atrapalhar sua noite de prazer”.
Geralmente, isso redunda mais em versos do que em violência. No caso específico do flagra acima, o esperto foi pego com a amante no mesmo motel em que passou a lua de mel com a oficial. Ela já tinha a intuição de que o futebol de toda 4ª feira era outra jogada e, ainda assim, prefere sofrer a fazê-lo sofrer:
“Você me prometeu o céu
E agora me tirou o chão?”.
O sertanejo-raiz também dispõe das suas, como o clássico de Tonico & Tinoco “Cabocla Tereza”, a moça de “gemido perfeito e uma voz cheia de dor”. E não era num motel, igual à dos “50 reais”, mas:
“Lá no alto da montanha
Numa casinha estranha”.
Olha o lindíssimo bolero “La barca”, de Roberto Cantoral, numa tradução do meu portunhol incerto:
“Hoje, minha praia se veste de amargura
Porque seu barco tem que ir embora
Pra cruzar outros mares de loucura”.
O tango, atração turística na Argentina, tem poemas maravilhosos que dão dó do protagonista, como em “História de um amor”. Alguém era “a razão da existência” de um eu-lírico obcecado em adorá-la. Não podia terminar bem. Foi o que ocorreu, tanto que acabou em música.
A insuperável das gentes é “Vou tirar você desse lugar”, de Odair José. Alguém vai à ZBM, a atualmente esquecida zona do baixo meretrício, “só pra se distrair em busca do amor”. Da 2ª vez, já não foi “só pra se distrair”, havia se apaixonado por uma profissional.
Veja se Shakespeare, Cervantes, Dostoiévski, Victor Hugo, Dante ou qualquer outro grande escritor seria capaz da seguinte poesia:
“Eu sei que você tem medo de não dar certo
Pensa que o passado vai estar sempre perto
E que um dia eu posso me arrepender
Eu quero que você não pense em nada triste
Pois quando o amor existe
Não existe tempo pra sofrer
Eu vou tirar você desse lugar
Eu vou levar você pra ficar comigo
E não me interessa o que os outros vão pensar”.
O tanto que o mundo seria melhor se a sofrência o governasse…
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