BBC Brasil – Apenas 12,3% dos habitantes do Rio de Janeiro ainda não tomaram nenhuma dose da vacina contra covid-19, de acordo com a Secretaria de Saúde Municipal – e parte desse grupo são crianças que ainda aguardam sua vez de serem imunizadas. Mas, entre os internados pela doença nos hospitais da rede pública da cidade, a realidade é diferente.
De acordo com a secretaria, cerca de 90% não completaram o esquema vacinal, e aproximadamente 38% não tomaram nenhuma dose.
Roberto Rangel, diretor médico do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, localizado no bairro de Acari, na Zona Norte, conta que já esperava por novos casos após as festas de fim de ano, mas não que o número fosse tão alto.
“O momento atual acaba despertando uma mistura de frustração e tristeza por vermos vidas sendo perdidas e pacientes em estado grave que poderiam não estar nessa situação se tivessem aceitado a vacinação. É angustiante para nós que estamos tratando a doença há tantos meses.”
Durante a pandemia, o Ronaldo Gazolla se tornou uma referência no tratamento da covid-19. O hospital criou um dos maiores centros de terapia intensiva do país, com 205 leitos, e, no total, 400 exclusivamente para o atendimento de quadros causados pelo novo coronavírus.
Em fases mais críticas, a instituição chega a contar com plantões de mais de 3,2 mil profissionais de saúde de diferentes especialidades.
Quando a vacina finalmente chegou ao Brasil, em janeiro do ano passado, Rangel disse que imaginava que logo estaríamos vivendo dias melhores, com turnos mais tranquilos pelo hospital e menos cenas tristes e dias de luto, como vinha acontecendo há tantos meses.
“Depois de muito esforço para atender milhares de pessoas, demos alta ao nosso último paciente internado por covid em novembro de 2021. Foi um alívio, uma emoção e motivo de festa para toda a equipe. Aí, de repente, voltamos a ver tudo de novo.”
‘Quem não se vacinou se arrependeu e sente culpa’
Com a alta de casos entre dezembro e janeiro, o médico diz se sentir frustrado – especialmente porque as pessoas em pior estado são aquelas que decidiram recusar o imunizante.
“Pode parecer óbvio para alguns, mas a população toda precisa entender que só a vacina pode nos salvar dessa doença.”
Os casos mais graves, aponta Rangel, que é médico de família e comunidade, são de pacientes que não tomaram ao menos duas doses da vacina, e a doença costuma ser ainda pior para quem se negou totalmente a se imunizar.
“Outro fator comum entre eles é o sentimento de arrependimento. Os que estão internados e não se vacinaram estão pedindo pelo imunizante, com a ideia ansiosa de que podem melhorar instantaneamente. Depois que a pessoa vivencia a doença e vê o que ela pode causar, é comum que mudem de ideia sobre a vacinação.”
O médico explica que é possível saber a situação vacinal de cada paciente pela ficha que preenchem ao serem admitidos no cuidado hospitalar.
“Caso a pessoa ou sua família não queiram informar, ainda é possível cruzar o sistema do hospital com o do Ministério da Saúde, recebendo de forma específica somente as informações dos que estão internados aqui.”
Entre as histórias que marcaram o médico está a de uma família que não acreditava na segurança e eficácia das vacinas até receber a visita domiciliar de agentes da equipe de saúde municipal.
“Os profissionais conseguiram convencê-los a ir até o posto na próxima data possível, mas infelizmente o pai da família foi contaminado logo na sequência.” O paciente está atualmente intubado.
“Ele até poderia ter contraído a doença, mas não estaria nessa situação tão grave se tivesse recebido a vacina quando teve a oportunidade pela sua faixa etária. Os parentes expressam o sentimento de culpa, estão muito abalados, e nosso papel é oferecer apoio psicológico por meio de uma equipe especializada”, diz Rangel.
Outro caso que o marcou foi o de um pai e seu filho que ficaram internados ao mesmo tempo no hospital. Pelas idades, a família toda poderia ter se vacinado, mas eles e todos os parentes próximos recusaram o imunizante.
“O filho, um homem de 35 anos com algumas comorbidades, acabou falecendo. Quando o pai acordou e já estava com a saúde estável, tivemos que dar a notícia para ele. A culpa tomou conta dele, que repetiu várias vezes a mesma frase ‘mesmo eu não me vacinando, deveria ter feito ele se vacinar’.”
Alta de casos reflete capacidade de transmissão da ômicron
As internações no Ronaldo Gazolla, aponta o diretor, são quase exclusivamente por covid-19. “São aproximadamente 240 pacientes, e a velocidade de contágio parece muito maior do que antes. Na próxima semana, ficaremos lotados, ou próximos disso.”
O rápido aumento de casos no Brasil – que bateu nesta semana duas vezes o recorde de infecções registradas em 24 horas – e em vários outros países do mundo desde o final do ano passado está relacionado à propagação da variante ômicron do novo coronavírus.
De acordo com a epidemiologista Maria Van Kerkhove, líder técnica da Organização Mundial da Saúde para covid-19, há três principais razões que tornam a ômicron tão transmissível:
– A variante desenvolveu mutações que permitem uma aderência mais fácil às células humanas;
– As pessoas podem ser reinfectadas mesmo que tenham tido a doença anteriormente ou tenham sido vacinadas;
– A replicação do vírus acontece no trato respiratório superior (diferentemente da delta e outras variantes, que o fazem na parte inferior), facilitando a propagação.
Algumas estimativas da Agência de Segurança Sanitária do Reino Unido sugerem que ela pode ser entre duas e mais de três vezes mais contagiosa que a delta.
“O que a gente percebe é que na cidade toda, os casos estão em uma crescente, novas internações acontecendo em todas as unidades do SUS [Sistema Único de Saúde] – até por que os dados são centralizados, e vemos que a demanda por leitos está aumentando muito”, afirma Rangel.
As baixas na equipe por contaminação de covid-19 e por influenza também são altas no Ronaldo Gazolla.
“Estamos trabalhando constantemente para trazer mais pessoas, e essas baixas são de todas as categorias de funcionários. Nosso foco agora é criar estratégias de reposição imediata, já que estamos com menos pessoas do que em qualquer outro momento da pandemia.”
Por enquanto, a avaliação do médico é que a nova variante – e outras que ainda podem aparecer – deixam o cenário futuro muito aberto.
“O que podemos fazer é o que temos orientado desde o início – incentivar a vacinação, o distanciamento social, o uso de boas máscaras e higiene – aquilo que todo mundo já sabe, mas a que uma parte da população insiste em não aderir.”
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