Tentativa da associação de procuradores de afrontar o STF com recurso ilegítimo é absurda, escreve Demóstenes Torres
Anápolis, que é uma esquina das Américas, tem distritos famosos, Interlândia e Souzânia, antigo Pau-Terra, com vocação para a glória. O 1º serviu de locação para o filme “Dois filhos de Francisco”. A área entre eles abrigou mais estrelas que as “Noites goianas” da canção de Joaquim Bonifácio e Joaquim Santana.
Mudaram-se de Hollywood para lá atrizes como Joan Lowell, a Meryl Streep do cinema mudo, protagonista de “Em busca do ouro” ao lado de Charlie Chaplin; Janet Gaynor, vencedora do 1º Oscar de Melhor Atriz; Mary Martin, que além do brilho próprio era mãe de Larry Hagman, o J.R. de “Dallas”, série cuja audiência global na época deixaria as multinacionais de streaming de agora falando sozinhas. Como essas e outras divindades da 7ª arte vieram parar no Centro-Oeste do Brasil? Depois de ler o artigo, assista ao excelente documentário “Hollywood no Cerrado”, dos diretores Armando Bulcão e Tânia Montoro.
O enredo que interessa, neste texto, foi contado pelo professor Geraldo Batista de Siqueira, verdadeiro ídolo para diversas gerações de estudantes de direito. Geraldão nasceu em Souzânia logo depois de Gaynor chegar ali com a estatueta recém-recebida. Foi promotor e procurador de Justiça num período romântico em que nos Ministérios Públicos era preciso saber direito.
No início dos anos 1980, tive com ele aulas de processo penal na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Goiás, hoje PUC. Numa delas, falou que estava vendo novela na TV Globo quando apareceu um tribunal do júri. Lá pelas tantas, um sujeito da plateia se levantou e gritou que assumia o crime doloso contra a vida. Imediatamente, antes do intervalo comercial, o sapo (indivíduo que assiste a algo sem tomar parte) estava sentado na cadeira do réu, sendo julgado pelo assassinato.
Aceita-se que autor de telelágrima escorregue no rito determinado na legislação, nunca líderes de militantes da área. A Ajufe (Associação dos Juízes Federais) e a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) saltitaram no noticiário afrontando decisão do Supremo Tribunal Federal. Esta entrou com agravo regimental por se sentir atingida por decisão do ministro Dias Toffoli enterrando de vez a Operação Lava Jato.
Para lembrar a inesquecível lição do professor Siqueira, é como se o sapo exibir a língua comprida fosse argumento bastante para substituir sujeitos processuais. No máximo, vai pegar mosca.
A verdade no caso é que associação não tem legitimidade para agravar, apenas para espernear e nesse detalhe ambas são exímias. Quem poderia recorrer, o procurador-geral da República, Augusto Aras, é o responsável pela derrocada das atrocidades lavajatistas. A entidade cumpre bem o papel de externar insatisfação de eventuais diretores e colegas dos que atuaram na operação que quebrou a economia do Brasil e, por açodamento de vaidosos, enlameou a que seria a maior faxina ética da era contemporânea.
Reconhecer a legitimidade recursal da ANPR no caso, com o suposto fim de proteger direitos transindividuais dos seus filiados, significa dar à associação o poder de agir como uma espécie de substituto processual universal e alternativo, capaz de questionar qualquer decisão judicial que contrarie seu quadro de integrantes. Nesse sentido, é possível imaginar a ANPR recorrendo de um recurso especial não admitido, ou de uma ação de habeas corpus concedida, em substituição aos órgãos constitucionalmente legitimados.
A ANPR não representa o Ministério Público Federal, mas seus filiados, que não se confundem com o MPF. Quando um procurador da República age, não é em nome próprio, mas do órgão. A associação defende os interesses particulares de seus integrantes. Portanto, o legitimado para recorrer é o MPF.
As razões recursais da ANPR permitem ver que a hipótese é absurda. Além da parte da decisão que determina a apuração dos desvios cometidos, age como o procurador-geral da República ao questionar o próprio mérito da reclamação, que não afeta direito algum de seus associados.
Os novos alunos de novos Geraldões vão estudar a Lava Jato como exemplo do que não se deve fazer. Os mestres lhes dirão que, se associação pudesse recorrer, a AJUFC (Associação Juvenil dos Frangos Caipiras) e a ANPG (Associação Nacional dos Pintos de Granja) iriam interpor agravo contra quem se delicia com a galinhada e ficaríamos sem o almoço de domingo. O absurdo é da mesma monta de afrontar o STF com recurso ilegítimo.
Os ladrões da honra alheia fizeram vítimas no país inteiro, mas felizmente o STF os limou do cenário e, por fim, Toffoli cravou uma cruz de prata no peito dessa indecência jurídica.
Quando as atrizes internacionais começaram a se deslocar da Califórnia para cá, Goiânia estava nascendo (em 1933) e Brasília era só um sonho de Dom Bosco que JK realizaria em 1960. Anápolis, por várias décadas superior à capital do Estado e à do país, era a Nova York do Cerrado, com sua noite lembrando (com a devida proporção, claro) a Broadway em que Mary Martin abafava.
Os diretores Bulcão e Montoro aquecem no documentário a similitude do Velho Oeste americano com o Centro-Oeste brasileiro. A diferença se estabelecia na ausência de vilões por aqui. Daí chamarem Anápolis de paraíso. Ao enfrentar Toffoli, a ANPR vira personagem de filmes de bangue-bangue, nos quais justiça era sinônimo de força e tinha razão quem sacava mais rápido.
São dignos de aplausos a coragem e o conhecimento demonstrados por Toffoli ao invalidar provas do acordo de leniência com a empreiteira Odebrecht, atual Novonor. Em vez de fustigar o ministro, as duas entidades deveriam considerar o didatismo de suas decisões e espalhar para os respectivos integrantes que juízes federais não devem se conluiar com ninguém, nem com procuradores da República. Combater a corrupção é causa digna, porém, até entre xerifes e caubóis havia procedimentos a ser obedecidos.
Atropelar as leis para alcançar aqueles que aos olhos de magistrados e MPs parecem culpados já era reprovável nos faroestes com John Wayne –que, conforme a obra de Montoro e Bulcão, também esteve na Nossa Fazenda, a propriedade de Mary Martin.
Janet Gaynor trouxe para Anápolis a estatueta de 1929. Ornava a estante tomando a poeira trazida pelo vento daquele chão plano e alto, o maravilhoso Planalto Central. Homens desassombrados iguais a Toffoli impedem um revival do que o Brasil não é, uma terra sem lei. A brisa sem a tempestade, só com a bonança.
Nunca um brasileiro ganhou o Oscar, apesar de a fantástica Fernanda Montenegro ter concorrido 70 anos depois de Gaynor, que o pessoal de Anápolis chamava de Dona Janete. Nunca um brasileiro teve tanto apoio para fazer o certo como Sergio Moro. Nunca um brasileiro frustrou tanta gente ao redor do mundo.
Dá um longa-metragem, de preferência não hagiográfico, como alguns que surgiram. Nas cenas, as associações serão bem-vindas como o sapo da novela, só que permanecem fora, não saem do brejo.
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