*Por Luciano Martins
Montesquieu, ao conceber a arquitetura de um Estado funcional, depositou na teoria da separação de poderes – executivo, legislativo e judiciário – a pedra angular para a salvaguarda da liberdade e a promoção de uma governança justa e eficiente. A essência desse modelo residia na intrínseca necessidade de um sistema robusto de freios e contrapesos, onde cada poder, exercendo vigilância mútua e impondo limites aos demais, obstaculizaria a concentração excessiva de poder e a emergência da tirania. O desiderato último era a materialização de um Estado que operasse incessantemente em prol do bem comum e dos interesses da coletividade.
Contudo, ao confrontarmos esse ideal de Estado com a intrincada realidade da concessão da BR-163 no Mato Grosso do Sul, o cenário que se descortina revela uma distância preocupante entre a teoria e a prática. A promessa de uma infraestrutura rodoviária moderna e eficiente, inscrita no contrato de concessão com a CCR MSVia em 2013, que previa a duplicação integral dos 845,4 quilômetros da rodovia – um corredor vital para o escoamento da produção agrícola e a segurança dos usuários – cedeu espaço a um palco de flagrante descumprimento contratual.
Decorridos mais de dez anos desde a assinatura do contrato, a materialização da duplicação integral permanece uma miragem. Enquanto o contrato estabelecia metas de duplicação significativas para os primeiros anos, a realidade atesta um progresso irrisório, com parlamentares estaduais denunciando que, até 2015, a concessionária deveria ter duplicado 322 km, mas apenas uma fração desse total foi efetivamente entregue. Essa gritante inadimplência contratual não apenas frustra as expectativas da população, mas também expõe uma falha primordial na supervisão e na execução de um serviço público essencial.
Paradoxalmente, enquanto a BR-163/MS languidesce em condições precárias, aquém dos padrões prometidos, a CCR MSVia colhe os vultosos frutos de uma cobrança de pedágio que se destaca como uma das mais onerosas do país, conforme reiteradamente apontado por representantes do legislativo estadual. A arrecadação bilionária da concessionária estabelece um contraste chocante com a precariedade da estrada, marcada por trechos perigosos e a persistente ausência do objeto da concessão – a duplicação.
A atuação da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), órgão regulador incumbido de zelar pelo cumprimento do contrato de concessão, revela uma questionável eficácia diante da persistente inadimplência da CCR MSVia. A concessionária, inclusive, teria desconsiderado uma determinação da ANTT para promover uma significativa redução tarifária, expondo a fragilidade da autoridade regulatória. O poderio econômico da empresa e aparente inoperância da ANTT realçam as dúvidas sobre a real capacidade do Estado em assegurar que as concessionárias cumpram rigorosamente suas obrigações contratuais e que os direitos dos cidadãos sejam efetivamente respeitados, para além de interesses outros.
A intervenção do sistema judicial, ao conceder liminares que suspenderam a redução tarifária determinada pela ANTT, adiciona uma camada de complexidade e alimenta a crítica. Embora o acesso à justiça seja um direito fundamental, decisões que aparentemente privilegiam o interesse econômico privado em detrimento do bem-estar coletivo levantam discussões pertinentes acerca do equilíbrio e da imparcialidade do sistema judiciário no enfrentamento de temas dessa natureza.
A Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul (ALEMS), ainda que com atraso de praticamente dois lustros, mobilizou-se através da criação de uma comissão temporária para acompanhar a relicitação da BR-163 e realizar audiências públicas. A iniciativa dos deputados em buscar o Ministério Público Federal (MPF) para solicitar a suspensão do leilão e investigar as graves irregularidades representa um passo importante, contudo, a demora na reação do parlamento estadual também se configura como parte da disfunção institucional.
O Tribunal de Contas da União (TCU), também se insere nesse intrincado cenário, tendo inclusive aprovado a repactuação do contrato de concessão com metas de duplicação substancialmente reduzidas. A morosidade nos processos decisórios do TCU é apontada como um fator que beneficia diretamente a concessionária, permitindo a manutenção da cobrança de pedágio sem a efetiva implementação das melhorias prometidas. Essa lentidão contribui para a perpetuação de um quadro desfavorável ao interesse público.
Em derradeira análise, a situação da BR-163 no Mato Grosso do Sul emerge como um eloquente testemunho da negligência institucional, com impactos deletérios na infraestrutura, na economia regional e, sobretudo, na segurança e na qualidade de vida da população. A patente falta de efetividade dos órgãos reguladores, a morosidade dos tribunais de contas e a reação tardia do poder legislativo delineiam um cenário de desequilíbrio de poderes, dissonante do modelo preconizado por Montesquieu, onde a ausência de mecanismos de controle eficazes permite que o interesse privado se sobreponha ao bem comum, acentuando a insatisfação e a desconfiança na capacidade do Estado de cumprir seu papel fundamental.
Diante do descaso patente na BR-163/MS, onde inoperância e morosidade parecem dançar em compasso com os lucros da concessionária, resta a pergunta: até quando a população sul-mato-grossense pagará a conta de um Estado que, aparentemente, olvidou os princípios de sua própria funcionalidade? E mais crucialmente, que legado de ineficácia e impunidade estamos a construir para as futuras concessões e para a própria crença na capacidade do poder público de zelar pelo bem comum?
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