Um Poder não pode usurpar a função de outro, mesmo que o outro brigue e obrigue, escreve Demóstenes Torres
Algo ou alguém deve interessar o desgaste do Supremo Tribunal Federal. Toda hora é um. Ou mais. O Executivo não tem coragem de enfrentar a mídia nem os fazendeiros nas reivindicações dos indígenas? Deixa para o STF decidir. O Congresso está com medo de legislar sobre aborto? Empurra para o Judiciário. Assim foi na implantação das cotas raciais, quando integrava o Senado e tive a oportunidade de debater o assunto na Suprema Corte. Assim tem sido sempre que algo controverso precisa ser pacificado.
Então presidente do STF, Rosa Weber se aposentou no sábado (30.set.2023). Uma semana antes, apresentou relatório favorável a descriminalizar o aborto nas 12 primeiras semanas de gravidez. Seu sucessor, Roberto Barroso, suspendeu a votação. Felizmente, o Supremo não pode ser um saco de pancadas. Mudar o Código Penal depende de deputados federais e senadores, não de ministros do STF.
Que o insatisfeito com o preceito primário dos artigos 124 (“Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”) e 126 (“Provocar aborto com o consentimento da gestante”) do código se candidate ao Congresso para adaptar a lei a seus conceitos. A punição para grávida que provoca aborto, detenção de 1 a 3 anos, é nada. Onde se lê “detenção”, leia-se “impunidade”. Para quem realiza, reclusão de 3 a 10 anos. Ficção jurídica, pois escapa pelas frestas das desculpas.
Os favoráveis ao aborto insistem que alguém com 3 meses está pronto para ser arrancado com pinça da barriga da mãe. Alheia à sociedade, a pauta tem tamanho histerismo que balança até gente séria na Praça dos Três Poderes. Mas os personagens certos para acolher as reivindicações são deputados e senadores.
Tudo é passível de proposição no Congresso, mas não é competência do STF determinada no artigo 102 da Constituição. Em vez de investir na caça às clínicas que interrompem gestação clandestinamente, mutilam e matam mulheres e seus filhos, o 1º poder, o Executivo, emprega forças na militância a favor do aborto.
No lugar da conscientização para evitar a gravidez de crianças e adolescentes, financia verdadeiras campanhas no sentido contrário. Esse método premia estupradores, principalmente os de vulneráveis, e os que provocam aborto com o consentimento da gestante, ainda que ela tenha sido influenciada pelo pai de seu bebê, por experientes no ramo ou pelas postagens aconselhando a praticar o mal. Em resumo, milhares de mães mortas ou com sequelas, milhões de bebês atirados no esgoto ou na lata de lixo, um país de vítimas.
Em 15 de setembro, o Datafolha divulgou que o Congresso é aprovado por 16% dos brasileiros, índice igual ao de 2019. Nos últimos anos, o STF manteve popularidade de 23%, segundo o instituto. O Poder360 publicou em agosto que Lula é incensado por 60%, conforme pesquisa Genial/Quaest. Significa que funciona terceirizar os temas causadores de xingatórios.
Aliás, desfrutando da 4ª temporada e meia no Palácio do Planalto, a esquerda ficou ás em delegar consequência. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, quis se deliciar em avião da Força Aérea Brasileira para ver seu time do coração jogar em São Paulo. Flagrada, sacrificou uma assessora. Ponto final.
Vão se enfileirando os maus exemplos. Em audiência pública no Senado, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, anunciou a volta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Sua congênere da verdade, a CNV (Comissão Nacional da Verdade), investigou durante 31 meses e concluiu que desde 1946 houve 434 mortos, dentre os quais 210 desaparecidos, contestando os regimes. O exagero de praxe. A ditadura foi de 1964 a 1985. Ao incluir desde o pós-Guerra, fizeram injustiça com Juscelino Kubitschek, o estadista que sofreu as barbáries do golpe, não que o aplicou.
Voltemos aos 210 desaparecidos. Quantidade semelhante de pessoas comuns sai de cena diariamente, somando os que a família registra e os que caem no esquecimento. Em maio de 2023, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou o Mapa dos Desaparecidos no Brasil e a média revelada foi assustadora: 183 pessoas desaparecem por dia.
Desde que Silvio Almeida tomou posse, em 3 de janeiro de 2023, já desapareceram 51.423 brasileiros, 15.000 deles, adolescentes de 12 a 17 anos. Só 16,6% vão voltar para casa, não necessariamente sãos e salvos. 1 milhão de brasileiros não políticos desapareceram nos últimos 15 anos. Não têm direitos? Não são humanos? Ou o Executivo planeja que o STF vá procurá-los, já que ninguém se preocupa com eles?
Na sessão em que Silvio disse ter levado ao presidente Lula a papelada para recriar a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, o senador cearense Eduardo Girão tentou presenteá-lo com um objeto representando um feto de 11 semanas, uma a menos que a idade adequada para o homicídio oficial. O ministro recusou e foi respeitado pelo senador, atitude rara quando ocorre o oposto.
Cristãos, como eu, combatem o aborto. É dogma da igreja. Porém, admito pensamento diferente. Existe forma legal de enfrentar e não é repassando a responsabilidade para os guardiões da Constituição.
Caso deputados e senadores continuem temendo o efeito de seus votos, que apelem para a democracia direta, via plebiscito (a população sentencia antes de o Congresso escrever o projeto, como entre monarquia e a República) ou referendo (o eleitor diz “sim” ou “não” a algo feito pelos congressistas, como no Estatuto do Desarmamento). O que devem prescindir é de afrontas como a de mandato para integrante de tribunal ou querer que a Câmara e o Senado sejam casas revisoras do STF. Cada instituição com suas características, cada componente com seu caráter.
Um Poder não pode usurpar a função de outro, mesmo que o outro brigue e obrigue. O STF não foge às lutas, suas ou não. Em suma, torna-se o patinho feio sendo o único sem voo de pato. Por bater asas sem temer o alto, leva tiro de todos os lados. Ainda bem que o time tem 11 pilotos alheios à grita, livres para obedecer ao livrinho.
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