São raros os mensageiros que reúnem condição, coragem e conhecimento para atravessar o país enfrentando a guerra e protegendo a Constituição, escreve Demóstenes Torres
Estava firme para escrever a respeito do show de Alaíde Costa, no sábado (8.jul.2023), na lendária “Casa de Francisca”, antiga sede da rádio Record, no centro de São Paulo. O repertório é de visitação a um disco de Alaíde e Oscar Castro Neves gravado em 1973.
Impressionou-me a limpidez da voz da extraordinária cantora, que completará 88 anos no próximo dezembro. Também vi a apresentação, em Brasília, da turnê de despedida de Milton Nascimento, talvez nosso maior cantor (equiparável a Orlando Silva no auge), e testemunhei sua decadência vocal. Alaíde “feshow”, para usar um termo da internet, com estonteante canção à capela de Heitor Villa-Lobos com letra de Manuel Bandeira.
Mudei de tema quanto ao artigo por assistir, em 10 de julho, a um programa do maior canal jornalístico de TV paga repercutindo entrevista de Jaques Wagner. O senador baiano conclui que Augusto Aras, o procurador-geral da República, se desincumbe muito bem da tarefa de ajudar o Brasil a conservar-se no Estado Democrático de Direito. Com isso, levantou a ira dos comentaristas, que passaram a enxovalhar a culta figura do mundo jurídico.
Wagner destacava o óbvio: que Aras era cogitado como agente do Estado que se revelou para permanecer à frente da PGR no próximo biênio. Seguiu-se esquete de baixarias: uns diziam que Aras não fez nada na época da pandemia, outros que protegeu o ex-presidente, um último o chamou de tão irrelevante que quando andava pelo salão nobre do Supremo Tribunal Federal, nenhum ministro se aproximava.
Detalhe nº 1: Lula também foi alvo dessa desconstrução. Detalhe nº 2: Aqueles analistas torcem pela indicação de Paulo Gonet Branco.
Aos fatos: Gonet merece o cargo. Sou admirador seu e de Aras. Escrevi aqui no Poder360 que ambos deveriam estar no Supremo Tribunal Federal. Se Gonet for PGR, o Brasil estará muito bem servido.
A repulsa dos conglomerados a Aras se deve a um único fato: o desmame da grande mídia da cobertura das prisões matinais criadas por procuradores da República vedetes do teatro rebolado. O ex-senador Wellington Salgado dizia:
“Ô, Demo, acordo às 5 e meia para ver quem será preso às 6.”
Referia-se ao espetáculo, que ia do canto do galo até a sessão coruja, de lavajatistas célebres, todos hoje em desgraça, que vazavam informações seletivas descontextualizadas e informavam jornalistas antecipadamente sobre as prisões.
Graças a Aras, acabou a farra de autoridades em conluio com repórteres aterrorizando famílias ao amanhecer com mandado na mão, uma câmera na outra, os sapatos prontos para chutar as liberdades individuais e pisotear a honra alheia.
É difícil se recuperar de busca e apreensão diante da mulher, dos filhos, dos vizinhos. É impossível se recuperar de prisão, mesmo que dure apenas algumas horas, pois são as piores de uma vida. Combater essa podridão demandou um custo, pago em parcelas diuturnas por Augusto Aras, que sofre por deixar em invólucro impermeável a mensagem salvadora dos princípios.
Entra um “Retrato em branco e preto”, como a canção de Tom Jobim e Chico Buarque gravada por Alaíde e Oscar em 1973:
- 14.abr.1912 – O Titanic, então maior navio do mundo, chocou-se com um iceberg próximo ao Canadá. O marinheiro britânico George Beauchamp pulou no bote 13 e foi um dos 710 sobreviventes;
- 7.mai.1915 – O Lusitania, que também foi o maior navio do mundo, afundou na costa da Irlanda depois de torpedeado por submarino alemão. O mesmo Beauchamp escapou junto com outros 760, mas 1.198 morreram, 128 deles norte-americanos, entre os quais o pensador Elbert Green Hubbard, autor da “Mensagem a Garcia”, o que nos leva a outra data histórica:
- 22.fev.1899 – Hubbard ouviu do filho Bert no café da manhã que o grande herói da Guerra de Cuba, entre EUA e Espanha, havia sido o oficial norte-americano Andrew Summers Rowan. Seu feito: em 1898, levou carta do presidente William McKinley ao general Calixto García, chefe dos revoltosos cubanos contrários à dominação espanhola. Durante o dia, de que se recordava por ser o do 167º aniversário de nascimento de George Washington, Hubbard tentara convencer um grupo a sair da letargia inspirado no exemplo de Rowan. À noite redigiu, em poucos minutos, a “Mensagem a Garcia”, que já teve bilhões de cópias impressas e é meme do bem nas redes sociais.
Nela, Hubbard ressalta:
“Não vem ao caso narrar aqui como esse homem [Rowan] tomou a carta, guardou-a num invólucro impermeável, amarrou-a ao peito e, após quatro dias, saltou de um pequeno barco, alta noite, nas costas de Cuba; ou como se embrenhou no sertão para, depois de três semanas, surgir do outro lado da ilha, tendo atravessado a pé um país hostil, e entregue a carta a García. O ponto que desejo frisar é este: McKinley deu a Rowan uma carta destinada a Garcia; Rowan tomou-a e nem sequer perguntou: ‘Onde é que ele está?’.”
Onde está o link entre Alaíde, Beauchamp, Hubbard, Rowan, McKinley, García e Lula? Como dizia o apresentador de TV Silvio Santos, novo amigo do petista, quem ganha é a carta. No caso, a Carta da República, promulgada em 5 de outubro de 1988. E Aras é o Rowan baiano, atravessou o país protegendo o texto (no caso, o constitucional).
Saiu governo, entrou governo e a Constituição continuou incólume. Às vezes, Aras desagradava um flanco, recebia chumbo grosso do outro, o escritório do ódio o fustigava com fake news suficientes para lotar o maior navio do mundo.
Lula, como McKinley, confia na robustez da democracia a ponto de ter voltado a Brasília logo após os atentados do 8 de Janeiro para dar a ordem de prender malfeitores (estivessem eles de farda, terno ou camiseta da CBF) e, depois, destituir os comandantes do Exército e do GSI (Gabinete de Segurança Institucional).
No front da civilização, o Executivo sabe que pode contar com o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público Federal, que não cederam 1 cm sequer do Plano Piloto para arruaceiro usar como valhacouto. Os personagens são os mesmos na PGR e nas presidências da Câmara, do Senado, do STF, do TSE. Nas intempéries, tomaram a Carta, guardaram-na num invólucro impermeável (a estabilidade jurídica), amarraram-na ao peito, embrenharam-se no deserto da impopularidade em território hostil e mantiveram o Brasil sem ruptura institucional.
São raros os mensageiros que reúnem condição, coragem e conhecimento para atravessar o país enfrentando a guerra das mídias e proteger a Constituição. Empreendedores, ministros, parlamentares e outros líderes estão vendo o efeito da nova gestão da PGR: naquele prédio, os espelhos não mais refletem o rosto de quem quer aparecer; agora, são vidraças transparentes que resistem a pedradas.
Empatando com Beauchamp e vencendo os versos de Chico cantados por Alaíde, Lula traz o corpo cravejado de lembranças por sobreviver a 2 desastres, o Mensalão e a operação Lava Jato. A vitória ocorreu ao pular no bote 13, contar com a iluminada defesa de Cristiano Zanin e voltar à Presidência.
É exceção. A maioria dos atingidos pelo vedetismo da Lava Jato ainda padece ao curar as feridas. Nenhuma plástica encobre as marcas de tantas prisões injustas. Nada remove as cicatrizes de milhões de empregos cortados, das candidaturas impedidas, dos mandatos amputados, das esperanças vãs num sistema legal invalidado pela vaidade.
Antídoto à campainha do terror, Aras representa o bloqueio aos holofotes acesos para mostrar quem mergulhou o Brasil nessa escuridão. Ele conhece as pedras do caminho, comporia Chico para encanto de Alaíde.
Muitos prometeram matar a bola no peito, mas o único que cumpriu foi Antônio Augusto Brandão de Aras.
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