Entre normas, lucro e função social: a exigente saga do empresariado

Milton Friedman, em sua shareholder theory, entende que “a única responsabilidade social de empresas é a maximização dos lucros dos acionistas, dentro do contexto legal e da ética” | Foto: Reprodução

A nova questão é o capitalismo de shareholders vs. capitalismo de stakeholders, pois valoriza-se o empreendedorismo em que todos ganhem

Por Thiago Costa dos Santos*

Tenho escrito uma sequência de artigos no Jornal Opção com a finalidade de alertar o leitor, especialmente os empreendedores, sobre questões legais e normativas que podem gerar consequências criminais. Caso ainda não os tenha visto, sugiro que leia. Poderão poupar muita dor de cabeça.Neste texto, porém, a perspectiva é outra além daquela legal/normativa. Refiro-me às exigências que advêm da própria cadeia de fornecimento, a rede de relacionamento formada por empresas que, em razão de sua limitação estrutural, financeira ou competitiva, dependem umas das outras para a entrega de um produto final.

Por exemplo, uma empresa que produz barras de chocolate utiliza diversos suprimentos para o seu processo de produção. Para tanto, precisa de fornecedores de cacau, leite, embalagem etc. Outro modelo, talvez o principal, é o processo de fabricação de automóveis. Diversas peças que compõem os veículos são terceirizadas e chegam dos quatro cantos do planeta. Não à toa, costuma-se utilizar a palavra “montadora” ao invés de “fábrica”.

Em razão de escândalos recentes, muitas empresas do topo da cadeia, inclusive multinacionais, têm estabelecido uma série de exigências para seus fornecedores. Caso optem ou não consigam se adaptar, são prontamente excluídos e “chutados” para fora da rede. Por que tanta “maldade”? Porque uma “faísca” na cadeia de fornecedores pode tornar-se um incêndio quando chegar ao cume, que no ditado popular é o fogo de morro acima. Boicotam-se multinacionais porque determinados fornecedores usaram trabalho escravo na produção de cacau, uva, carvão etc. Assim, a exigência do mercado é consideravelmente mais rígida do que a própria lei ou norma.

Nesse cenário, a busca desenfreada pelo lucro vem sendo cada vez mais coibida, seja pelo engajamento dos consumidores, seja pela exigência do Estado ou até mesmo pela consciência dos próprios empresários. Surgiram, assim, os conceitos de capitalismo de shareholders e capitalismo de stakeholders.

Tendo como referência o argumento de Milton Friedman, a shareholder theory entende que “a única responsabilidade social de empresas é a maximização dos lucros dos acionistas, dentro do contexto legal e da ética”.[1] Dessa forma, o propósito do setor empresarial seria, basicamente, gerar riquezas para seus proprietários/ sócios/ acionistas. Esse pensamento ganhou bastante força até os anos 2000.[2] A primeira década do segundo milênio, porém, foi marcada por grandes escândalos corporativos, o que disparou um sinal de alerta no setor privado.

Paralelamente, a partir de 2010, aumentaram as “preocupações com o meio ambiente e a promoção de conceitos como sustentabilidade, CSR e ESG”.[3] A partir disso, surgiram movimentos em defesa desse alargamento da responsabilidade social da empresa. A essa nova consciência empresarial, deu-se o nome de capitalismo de stakeholders (ou teoria dos stakeholders). Incluem-se no conceito de stakeholders, além dos próprios acionistas, os empregados, as comunidades vizinhas, os consumidores, os fornecedores etc.

Diante disso, é possível visualizar esse fenômeno na economia mundial: a transição do capitalismo de shareholders para o capitalismo de stakeholders.[4] Cresce a ideia de que ao setor empresarial não cabe tão somente visar o seu próprio lucro, mas, também, ser engrenagem para reduzir desigualdades e ser mola propulsora da transformação social.

Nesse quadro, a sociedade deve valorizar cada vez mais os empreendedores, estejam eles no campo ou na cidade. Além de eles arriscarem o próprio tempo, dinheiro e suor, também devem atender a exigências legais, normativas, econômicas, ambientais e sociais. Eles, sim, são os verdadeiros heróis desta nação.

*Thiago Costa dos Santos é mestre em Direito Constitucional, integra o escritório Demóstenes Torres Advogados, nas bancas de Compliance e Direito Penal Econômico.


[1] PRATA, Daniela Arantes. ESG e sustentabilidade corporativa: estamos no caminho certo? In: ESG e justiça climática. Eduardo Saad-Diniz, Gabrielli Duarte (org.). Coleção Business & Criminal Justice, vol. 8. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 255.

[2] Ibid., p. 255.

[3] PRATA, op. cit., p. 255.

[4] SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e complianceentre a educação executiva e a interpretação judicial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 75.