Que haja luz!

Do além-mar ao imperioso Amazonas: o subdesenvolvimento de uma região tão pujante como a Amazônia não permite, sob nenhuma perspectiva, esquecer o passado não tão distante constituidor de premissas jocosas sobre o povo, a cultura e a história de quem até hoje anseia por gerir seu destino. Na verdade, esse é o viés que mantém acesa a chama de quem almeja por justiça social, por índices positivos, por projetos que tirem o amazônida do inóspito.

Como na letra de Mosaico de Ravena, “A culpa é da mentalidade criada sobre a região. Por que que tanta gente teme? Norte não é com M”. Não é sobre exclusão, é sobre amputamento. É a luta por dinâmicas que impliquem na modernização das estruturas sociopolíticas e econômicas, de forma relevante e transformadora, pois, se assim não for, ficar-se-á não sei com quantas almas, como descreve a poema de Fernando Pessoa: “Atento ao que sou e vejo, torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo. É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; assisto à minha passagem, diverso, móbil e só, não sei sentir-me onde estou”.

Mesmo que o “A” possa servir ao “chacotismo” dos tantos barrismos que existem com o nortista, com o amazônida, como se prefixalmente indicasse “fora do mapa”, o Amapá é um estado jovem e reconhecido nacional e internacionalmente pelo alto percentual de espaços preservados, inclusive, tendo parte significativa de seu território ocupada pelo Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, imensa reserva natural da biodiversidade brasileira.

Sob outra perspectiva, esta advinda da própria geografia local, o Amapá é também umas das unidades da federação composta por regiões extremamente isoladas e de difícil acesso, a exemplo, o Arquipélago do Bailique. Margeado pelo Oceano Atlântico, de um lado, e pelo Rio Amazonas, de outro, o Bailique é formado por oito ilhas estuarinas, distribuídas em 51 comunidades, e compõe um daqueles lugares onde lidar com a força da natureza e o isolamento da capital, Macapá, distante cerca de 12 horas de viagem de barco, requer dos moradores algo aquém da resiliência.

O Arquipélago do Bailique é um pedacinho do Brasil onde tratar de política pública é, acima de tudo, discutir, desenvolver e implementar práticas sustentáveis, inovadoras, estratégicas e realmente eficientes. Isso porque a atmosfera do lugar demanda investimentos em projetos baseados na realidade de brasileiros cujas necessidades básicas como água potável, luz e alimentação dependem diretamente de ações integradas de todos os agentes públicos envolvidos e desses com o meio ambiente.

A região sofre um processo natural de erosão denominado Terras Caídas. Estruturas básicas como escolas, casas, postos de tratamento de água são levados, na literalidade da expressão, pelas águas. Outro agravante para os moradores dessas ilhas é que o uso da eletricidade para manter a geladeira e luz à noite depende diretamente de geradores a diesel. Pois é…, aos sulistas que sofrem com a famosa bandeira vermelha na conta de luz durante os meses de escassez de água, uma realidade bem pior existe: o fato de que milhares de cidadãos, abarcados pela mesma Carta Magna, pelos mesmos direitos sociais e ambientais, se quer têm energia elétrica para conservar seus alimentos ou iluminar suas residências.

Sem jamais desmerecer a beleza literária, a vida do amazônida há décadas já não mais se resume ao cotidiano explicitado na letra do artista amapaense Zé Miguel: “A vida daqui é assim devagar. Precisa mais nada não pra atrapalhar. Basta o céu, o sol, o rio e o ar. E um pirão de açaí com tamuatá”. Em um mundo onde o tripé economia, meio ambiente e sociedade precisam estar com os discursos alinhados de forma homogênea e no qual as práticas coexistam de forma legítima e substantiva, ideias baseadas na tecnologia e no uso eficiente dos recursos naturais nas comunidades mais semotas é um caminho, diga-se sem volta, para garantir que milhares de pessoas sejam atendidas com a potencialidade que merecem e a partir de fontes renováveis.

E, foi assim, pedindo ajuda do céu, ao “Rei Sol”, que as ideias mais proveitosas chegaram ao Bailique, afinal de contas o bailiquense também gosta de açaí gelado. Fonte compatível com a tropicalidade e proximidade da região com a Linha do Equador, no Arquipélago do Bailique, a energia solar apresentou-se como uma das poucas alternativas que propiciam o mínimo de dignidade para centenas de famílias. Apesar do seu uso remontar às origens das antigas civilizações, foi nos Estados Unidos que, em 1959, iniciou-se o processo de seu aproveitamento como fonte alternativa de energia elétrica.

Entidades não-governamentais já atuavam com a proposta na região do Bailique. Recentemente, como resultado da Medida Provisória 1010/2020, do Congresso Nacional, através da gestão municipal de Macapá, diversas comunidades foram contempladas com a implantação de 500 pontos de luminárias led autônomas. Há, ainda, o Programa “Mais Luz Para a Amazônia”, do Governo Federal, desenvolvido para atender às regiões remotas de toda Amazônia Legal, e que já está com o Termo de Compromisso assinado com o estado do Amapá. Será que o sol é para todos mesmo? Cenas dos próximos capítulos…

Enfim, é sob o olhar de Gaia, de teia, de interligação, de integração para com o restante do país (e do mundo), que o amazônida não aceita mais ser imaginado e tratado como alguém que vive tropeçando em jacarés ou pulando de galho em galho pela floresta. É politicamente correto defender as florestas, os quintais do amazônida. É lindo! Que seja politicamente correto também defender os direitos e as garantias fundamentais. Que haja dignidade! Que haja luz!

 

Euridece Pacheco Ruella

Prof.ª. Ms.ª em Direito Ambiental e Políticas Públicas

Antonio Roberto de Souza Góes

Tenente do CBM/AP, pós-graduado em Gestão Pública