Por Demóstenes Torres e Caio Alcântara Pires Martins
A ampliação das funções jurisdicionais e das expectativas de melhoramento social que as atividades de juízes e cortes de justiça poderiam promover criou uma crescente desautorização e desconfiança quanto à própria prática parlamentar e um estreitamento de seu lugar enquanto precondição para a realidade democrática.
Nesse cenário, o lavajatismo, espécie de punitivismo voltado à macrocriminalidade, deixou como herança para considerável parte da comunidade jurídica a resistência às reformas legislativas com viés garantista. Mesmo após sancionados, projetos que pretendem regular e efetivar as garantias fundamentais previstas na Constituição sofrem restrições. Um exemplo são os artigos 3º-A a 3º-F do CPP, os quais instituíram o juiz das garantias, para diferenciar a competência dos magistrados que atuam nas fases investigativa e processual. Os dispositivos estão suspensos por decisão monocrática do então presidente do STF, Luiz Fux, há mais de três anos e, ainda, sem data para julgamento colegiado (ADI’s 6298, 6299, 6300 e 6305).
A Lei 14.230/21, que reformou a Lei de Improbidade Administrativa, é garantista e deve ser preservada[1]. Talvez, justamente por conta desse caráter, ela tem gerado incansáveis discussões.
Após anos de esforço doutrinário para estender à matéria de improbidade os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, como retroatividade da lei mais favorável, tipicidade, legalidade e non bis in idem[2], o STF decidiu, em repercussão geral, no ARE 843.989, que: 1) deve-se comprovar responsabilidade subjetiva para que sejam tipificados os atos ímprobos, porém, 2) a revogação da modalidade culposa é irretroativa, sem incidência quanto à coisa julgada; 3) a nova lei é aplicável aos atos culposos praticados na vigência do diploma antecedente, mas sem condenação transitada em julgado, dada a expressa revogação do tipo culposo, devendo-se analisar eventual dolo por parte do agente, e 4) os novos prazos prescricionais só são aplicáveis a partir da publicação da lei[3].
A reforma cuidou de, enfim, estabelecer prazos prescricionais para atos ímprobos, inclusive intercorrentes, com marcos interruptivos e suspensivos (artigo 23). No anteprojeto do Projeto de Lei 10.887/18, a comissão de juristas fez inserir no art. 23 o § 2º, para constar que “a pretensão à condenação ao ressarcimento do dano e à de perda de bens e valores de origem privada prescreve em 20 anos a partir do fato”. Tal dispositivo foi suprimido e ficou sem correspondência no diploma sancionado.
Perdeu-se grande oportunidade de solucionar o problema da (im)prescritibilidade do ressarcimento ao erário — mesmo sabendo que provavelmente a escolha legislativa seria questionada no STF.
Conforme o artigo 37, § 5º, da CF, “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. A esse respeito, sobrevieram dois julgamentos importantes. No Tema 897 de repercussão geral, em 8/8/18, o Supremo fixou a “tese” de que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”. Já o STJ assim decidiu o Tema 1.089, de recursos especiais repetitivos: “Na ação civil pública por ato de improbidade administrativa é possível o prosseguimento da demanda para pleitear o ressarcimento do dano ao erário, ainda que sejam declaradas prescritas as demais sanções previstas no art. 12 da Lei 8.429/92” (DJe 13/10/2021).
Durante o julgamento no STF, o ministro Edson Fachin votou no sentido de que ação de ressarcimento, supostamente imprescritível nos termos da Constituição, poderia suceder à prescrita ação de improbidade. Foi acompanhado pela min. Rosa Weber: “Por óbvio que se o ressarcimento de dano ao erário pressupõe um ato de improbidade administrativa reconhecido judicialmente, nada impede que, na ação de ressarcimento, se busque exatamente a declaração da prática de um ato de improbidade administrativa apenas para efeito de ressarcimento do Tesouro”.
Há, então, possibilidade irrestrita de se ajuizar demanda ressarcitória do dano, independentemente do lapso temporal transcorrido? Apresentamos alguns motivos para responder de forma negativa.
- O constituinte originário refutou esse caráter imprescritível. Pouco se lembra que, nos trabalhos da Assembleia de 1988, um substitutivo do relator Bernardo Cabral previa a imprescritibilidade do dano no artigo 43, § 4º, do Projeto[4]. Essa proposta foi retirada do texto, de modo que se afastou a imprescritibilidade na CF. Lembremos que documentos históricos são importantes para apurar o significado dos termos empregados (e não empregados) no texto, a fim de evitar injustiças interpretativas[5].
- A prescrição é regra, e sua exceção deve constar de forma expressa Carta Magna, como ocorre no artigo 5º, XLII e XLIV, sob pena de se sacrificar a legalidade e a segurança jurídica. A prescritibilidade, segundo Pontes de Miranda,“serve à segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das pretensões e das ações”[6], “quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos”[7]. Em termos de proteção do interesse público, a segurança jurídica possui mesma (ou maior) importância do que a indisponibilidade do patrimônio público[8]. Nesse aspecto, Marcelo Figueiredo discorre que o artigo 37, § 5º, “é um tanto demagógico porque trabalha com dados de fantasia”. “Fica muito difícil imaginar que depois de 30 ou 50 anos possa o Estado aparelhar ações de ressarcimento. Muito provavelmente as pessoas envolvidas, as provas, as testemunhas já terão desaparecido[9].i
- A imprescritibilidade é desproporcional. Mesmo quem tira a vida de outrem há de ser acionado dentro de algum prazo. A justificativa de que o ressarcimento não se trata de “sanção” é ainda mais aflitiva, pois se teria uma medida não sancionatória capaz de afetar direitos fundamentais por prazo infinito[10].
- Sereparar o dano não é uma sanção, não está a medida abarcada pelo Direito Administrativo Sancionador; o artigo 37, § 5º, da CF separou os prazos prescricionais de ressarcimento[11], daí o sentido da expressão “ressalvados”. Não há, porém, comando de imprescritibilidade. A interpretação correta do dispositivo é de que a prescrição do ressarcimento não deve ser tratada pela legislação de improbidade, porquanto há danos ao patrimônio público que não configuram atos ímprobos. Então, o prazo de ressarcimento não seria o mesmo dos ilícitos da LIA, podendo ser menor ou maior: houve correta divisão das pretensões punitivas e ressarcitórias[12].
- Para caracterizar ato ímprobo (ante a presunção de não culpabilidade, um tanto quanto ignorada hoje em dia), é necessário haver sentença condenatória transitada em julgado em ação de improbidade administrativa. Não serve, para esse efeito, a conclusão adotada em inquéritos civis públicos ou tomada de contas, por exemplo. Portanto, a par dos entendimentos do STF e do STJ, é escorreito dizer:“Formado em juízo tal título executivo, que declare a existência da prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa, a pretensão ressarcitória daí decorrente é imprescritível”[13]. Somente nessa hipótese.
Prescrita a pretensão de se declarar um ato como ímprobo, o exame efetivo do fato resta vedado. A segurança jurídica e a sanção à inércia impedem seja verificada a existência de pagamento indevido, para fins de ressarcimento[14]. É no mínimo estranho um réu se defender de uma pretensão prescrita (improbidade) para evitar uma consequência (ressarcimento) de uma condenação que não poderá existir.
Julgaram nesse sentido, recentemente, o TRF-3 e o TJ-MG:
APELAÇÃO CÍVEL. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. AUSÊNCIA DE AÇÃO PRÓPRIA E TRÂNSITO EM JULGADO DEMONSTRANDO EVENTUAL CRIME OU IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA DA APELADA. IMPRESCRITIBILIDADE AFASTADA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DO INSS. OCORRÊNCIA. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. A prescrição das ações de ressarcimento ao erário está disciplinada no artigo 37, § 5º, da Constituição Federal. 2. Na interpretação desse dispositivo, o Supremo Tribunal Federal concluiu que a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário somente se aplica a ilícitos penais ou de improbidade administrativa, conforme tese firmada no RE nº 669.069/MG. 3. No caso dos autos, na ausência de ação própria e com trânsito em julgado demonstrando eventual condenação da apelada por crime ou improbidade administrativa, não há que se falar em imprescritibilidade. 4. O recebimento indevido de benefício previdenciário caracteriza-se como ilícito civil, nos termos dos artigos 186 e 927 do Código Civil. Sendo assim, o prazo prescricional para a ação de ressarcimento por parte do INSS é de três anos, conforme previsto no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. 5. No caso dos autos, os valores demandados foram recebidos indevidamente pela parte ré no período de 06/2006 a 01/2010, enquanto o ajuizamento da presente ação de ressarcimento de danos ao erário (causa interruptiva do prazo prescricional) ocorreu apenas em 23.02.2016, ou seja, após o decurso de lapso temporal de três anos, de forma que se encontra prescrita a pretensão do INSS.[15]
APELAÇÕES CÍVEIS. […] IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. ART. 23, § 8º, DA LEI Nº 8.429/1992 COM REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 14.230/2021. NORMA MAIS BENÉFICA. APLICABILIDADE IMEDIATA E RETROATIVA. PRESCRIÇÃO CONFIGURADA. RECURSO PREJUDICADO. […] Nos moldes do § 8º do art. 23, com as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, “o juiz ou o tribunal, depois de ouvido o Ministério Público, deverá, de ofício ou a requerimento da parte interessada, reconhecer a prescrição intercorrente da pretensão sancionadora e decretá-la de imediato, caso, entre os marcos interruptivos referidos no § 4º, transcorra o prazo previsto no § 5º deste artigo.” – A sentença foi proferida em 11.1.2021 e publicada no Diário Oficial em 25.1.2021, mais de 12 (doze) anos depois do ajuizamento da ação civil pública de improbidade administrativa, ocorrido em 26.5.2008, acarretando, nos termos do artigo 23, caput, §§ 4º, I e II, 5º e 8º, da Lei 8.429/1992, com as alterações da Lei 14.230/2021, a consumação da prescrição intercorrente da pretensão sancionadora, não havendo, in casu, ressarcimento ao erário. Reconhecimento da prescrição intercorrente.[16]
- Seimprobidade é uma ilegalidade qualificada, marcadamente pela intenção desonesta do agente, e se esse ato deve ser reconhecido em ação própria, nos prazos previstos na nova LIA, não há outro caminho: sem condenação transitada em julgado com base na Lei 8.429, trata-se de ilícito civil — ainda que praticado contra a administração pública, pois, repita-se, nem todo ato ilegal é ímprobo. A propósito, conforme decidido no Tema 666 de repercussão geral, “é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”. Portanto, o ressarcimento não consistente em ato de improbidade transitado em julgado prescreve em cinco anos, tempo previsto para se reclamar qualquer direito contra a administração pública, salvo expressa disposição contrária[17].
- Para concluir, voltemos ao anteprojeto da comissão de juristas, que cominava ao ressarcimento prescritibilidade de 20 anos. Com acerto, Medina Osório diz que“a melhor solução talvez fosse fixar um prazo (elevado) mínimo de prescrição para essas demandas”[18]. Mas a ânsia antigarantista pela impossibilidade de prescrição gerou, segundo sustentamos, um prazo 15 anos menor.
[1] Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Nóbrega. Marcadamente garantista, a reforma é louvável e deve ser preservada. https://www.conjur.com.br/2022-set-16/improbidade-debate-marcadamente-garantista-reforma-louvavel-preservada.
[2] Por todos, Fábio Medina Osório, que defende a tese desde 1999 (Direito Administrativo Sancionador. 8. ed., 2022, Nota à 8ª Edição).
[3] Ainda, por decisão do min. Alexandre de Moraes em dezembro de 2022, nas ADI’s 7236 e 7237, está suspensa a eficácia dos arts. 1º, § 8º; 12, § 1º; 12, § 10; 17-B, § 3º, e 21, § 4º, incluídos ou alterados pela nova lei. Destacam-se os dois primeiros, que, respectivamente, afasta a improbidade nos casos em que o ato tenha se dado com base em entendimento controvertido nos tribunais e prevê que a perda da função pública atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza do agente com o poder público no momento da prática do ato.
[4] “§ 4º – A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, que serão imprescritíveis”.
[5] Calil Simão, citando Carlos Maximiliano. Improbidade Administrativa: teoria e prática, 2022, p. 884.
[6] Tratado de Direito Privado, p. geral, tomo VI, 3. ed., 1970, p. 101.
[7] Idem, p. 127.
[8] Calil Simão, op. cit., p. 883.
[9] Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil (art. 37). J. J. Canotilho, Ingo Sarlet, Lenio Streck, Gilmar Mendes (orgs.), 2. ed., 2018. No mesmo sentido: “A perda ou destruição das provas exporia os que desde muito se sentem seguros, em paz, e confiantes no mundo jurídico, a verem levantarem-se – contra o seu direito, ou contra o que tem por seu direito – pretensões ou ações ignoradas ou tidas por ilevantáveis” (Pontes de Miranda op. cit., p. 100).
[10] Medina Osório, op. cit., p. 487.
[11] Ibidem.
[12] Isso “em razão de suas diferenças, que, inclusive, não são compreendidas, na atualidade, por grande parte da doutrina e jurisprudência” (Calil Simão, op. cit., p. 885).
[13] Aldem Araújo. A nova Lei de Improbidade Administrativa e a prescrição do ressarcimento ao erário. https://www.conjur.com.br/2021-dez-14/johnston-lia-prescricao-ressarcimento-erario.
[14] TJSP, APL 1050774-67.2014.8.26.0053, Rel. Claudio Augusto Pedrassi, 2ª Câmara de Direito Público, DJe 27/08/15.
[15] TRF-3, ApCiv 0000705-29.2016.4.03.6107/SP, Rel. Wilson Zauhy Filho, 1ª Turma, DJe 20/8/21.
[16] TJMG, AC 0735602-52.2008.8.13.0338, Rel. Wander Marotta, 5ª Câmara Cível, DJe 3/6/22. Nessa mesma orientação: TJRO, AC 0013809-05.2009.822.0018, Rel. Eurico Montenegro Junior, 1ª Câmara Especial, j. 02/02/2021; TRF-4, AC 5060464-39.2013.4.04.7100/RS, Rel. Marga Bessler, j. 5/10/21, 3ª Turma; TRF-4, AG 5048108-64.2016.4.04.0000, Rel. Fernando Quadros da Silva, j. 9/5/17, 3ª Turma.
[17] “E o tem, apesar de a legislação só estabelecer o prazo prescricional da ação do administrado contra a Administração, diante da aplicação do princípio constitucional da igualdade” (Calil Simão, op. cit., p. 885).
[18] Op. cit., p. 487.
Demóstenes Torres é advogado, sócio fundador do escritório Demóstenes Torres Advogados, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, especialista em Direito e Processo Penal pela Academia de Polícia Civil de Goiás. Procurador de Justiça aposentado e duas vezes Procurador-Geral do MP-GO. Senador da República por Goiás (2003/2012); presidiu a CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado.
Caio Alcântara Pires Martins é advogado, sócio do escritório Demóstenes Torres Advogados, mestre em Direito Constitucional pelo IDP, pós-graduando em Direito e Processo Penal pela ABDConst.
Artico publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2023, 10h15
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