Cisplatina está muito além da prata. Leia agora o artigo de Demóstenes Torres!

Brasileiros deveriam aproveitar o próximo feriado para conhecer o Uruguai, mas há o risco de não querer ir embora, escreve colunista.

Do século 17 ao século 19, o Uruguai foi disputado por espanhóis e portugueses. Agora, por turistas de todo o mundo. Além das riquezas naturais e da privilegiada posição geográfica, tem algumas particularidades inexplicáveis. Por exemplo, o futebol.

Com população (3 milhões e 400 mil) semelhante à do Rio Grande do Norte e pouco maior que o Acre (173.626km²), ganhou mais Copas do Mundo (2) que a criadora do esporte, a Inglaterra (caso a Fifa cumpra a palavra e considere mundiais as medalhas de ouro nas Olimpíadas de 1924 e 1928, seria tetra como as seleções da Itália e da Alemanha). Nas eliminatórias para a próxima, está em 2º lugar e os brasileiros, em 6º, com menos da metade dos pontos. E nos proporcionou vergonha nacional maior que o 7 a 1 da Alemanha: o Maracanazo, derrota na final de 1950. O craque do Brasileirão de 2023 foi o uruguaio Luizito Suárez, então no Grêmio. Mas aqui o jogo é outro.

O Uruguai já foi nossa província (designação anterior de estado) da Cisplatina, que em português seria “aquém do Rio da Prata”, algo assim, pois se encerra o mapa. Obra de d. João 6º, rei do Brasil, Portugal e Algarve. Entre idas e vindas, superou década sob domínio do Brasil, no todo ou em parte, até impor outra sova tão impiedosa quanto Maracanazo e 7 a 1 juntos: em 1825, 33 sujeitos invadiram o Rio Grande do Sul e declararam a independência do Uruguai. Para coroar a humilhação, batizaram uma cidade de Treinta y Tres, terra natal de Darío Silva, aquele jogador da seleção que teve uma perna amputada e, não profissionalmente, continuou jogando com prótese.

Se alguém aí ainda não se convenceu de que a Cisplatina vai além de um rio de ouro, que experimente visitá-la. Sou fã da América do Sul completa, considero Buenos Aires o 2º melhor lugar do planeta (o nº 1 é Nova York, que, no entanto, está se deteriorando por causa das drogas) obviamente, deixo de citar conterrâneos para evitar celeumas. E volto ao futebol. Tem coisa que só acontece com o Botafogo, diz a crônica esportiva, e o Brasileiro de 2023 esteve aí para provar. Tem coisa que só acontece ao Uruguai. E coisa muito boa.

Já fui a Galápagos, arquipélago no Equador justificadamente famoso por ter sediado pesquisas de Charles Darwin que levaram à teoria da Evolução. Lá, vi muitos lobos-marinhos, porém nada que se compare ao que tive o privilégio de conhecer na ilha de Los Lobos, onde estive há poucos dias. Hospedei-me no paradisíaco lugarejo de José Ignácio, antiga vila de pescadores que homenageia um deles, espanhol pioneiro na região. Logo ali, pertinho, está Los Lobos, perto de Punta del Este, de cujo porto se sai para lá. Na travessia, o comandante do barco nos conta que os animais são curiosos e adoram brincar, inclusive com humanos tão amistosos quanto. Como as pessoas sérias, leões-marinhos e lobos-marinhos odeiam invasores de suas propriedades. Se o visitante pisar em pedras que considerem seu território, ficam agressivos.

Eu e minha mulher, Flávia, nos divertimos entre eles. Foram horas inesquecíveis de um passeio desfrutável exclusivamente naquele pedaço do céu que Deus fez para esta galáxia.

Claro, os uruguaios ajudaram. Los Lobos sediava um frigorífico especializado em matar lobos-do-mar e baleias. Foi desativado e substituído por uma reserva natural indescritível. Milhares de lobos-marinhos e centenas de leões-marinhos se aproximam e a viagem já valeu, a vida está valendo. Nadar no meio deles é uma forma de o Criador reafirmar seu amor pela Humanidade. A animação deles, com sons idênticos ao barulho pós-gol do Brasil, é algo inefável. Um passeio único que a gente deseja repetir 33 vezes.

Aquele povo foi brasileiro e isso deveria ser tema de teses de doutorado em sociologia, administração pública e demais áreas que medem a altura do sarrafo transposto por populações. Punta Del Este, destino aplaudido em todos os continentes, fica lotada. Não se vê um papel jogado na rua, um toco de cigarro fora da lixeira. Nos restaurantes, que merecem preencher o Guia Michelin, obviamente é proibido fumar. Nos dias que duraram a nossa excursão, vi apenas uma pessoa consumindo cigarro. Eletrônico. Quando abriu a boca para expelir bobagem, revelou a nacionalidade e os cisplatinos presentes concluíram novamente pela bênção da independência enquanto eu e Flávia lamentamos não a presença, e sim o fato de o caso estar longe de ser isolado.

O que a BBC, a famosa rede de comunicação de Londres, chama “pequeno e próspero vizinho brasileiro”, vangloria-se do que considera “indústria alimentar que alimenta 10 vezes mais pessoas do que tem de habitantes”. É centro internacional de energias renováveis e, pela segurança jurídica, apelidado de “Suíça do Cone Sul”. Ao lado da agropecuária, e rodando por lá testemunhei nos onipresentes carneiros por que a Europa veste sua lã, o turismo é um dos grandes produtos da economia do país vizinho. Assisti ao vivo uma das razões. O táxi que me levaria a um restaurante teve problema no deslocamento e poderíamos perder a reserva. Luzia, a atendente do hotel xará de minha mãe, se prontificou a nos levar em seu próprio carro. Pequenos gestos assim formam um grande país, mesmo do tamanho do Acre.

Encontrei um gaúcho de Livramento que está em José Ignácio há 20 anos, feliz no emprego e com a família ali conseguidos. Elogia educação (“magnífica”), segurança (“impecável”), saneamento, enfim, 100% do país (“de 1º mundo”). Diz que a liberação de drogas não atrapalhou porque continuam proibidas a estrangeiros e não há moleza na fiscalização. A saúde é predominantemente privada até para aposentados. Uma consequência de a oferta ser minúscula é a baixa procura pela pública, que acaba sendo também muito boa. O comentário de alguns trabalhadores é o senão encontrável, a carestia. Para quem vive parte do tempo em Brasília, o susto com os preços é menor, todavia no geral deve pesar.

Para melhorar o ótimo, aprimoraram inclusive as parreiras. Há 15 anos estive nos vinhedos e reclamei que a uva Tannat, que trouxeram do sul da França, era mais dura que o volante Obdulio Varela, responsável por parar a seleção canarinho no Maracanazo. Ao contrário da camisa amarelinha, desclassificada pela Argentina dos Jogos Olímpicos de Paris neste ano, as videiras evoluíram acima do que prenunciaria Darwin. A Tannat está bem palatável, especialmente os cortes, com padrão de excelência.

Em mercados do balneário, semelhante aos norte-americanos e mexicanos do nível de Los Cabos, acham-se leite, queijo, carne e embutidos produzidos no Uruguai com imensa qualidade. Azeites e azeitonas preencheriam meses de programas de culinária. Presuntos de primeira linha. O doce de leite é comparável somente ao da minha mãe e da minha sogra.

Enfim, aproveite o próximo feriadão e vá ao Uruguai. O único senão é que se você for a José Ignácio pode tomar a mesma decisão que ele e passar o restante da existência por ali, entre lobos-marinhos, leões-marinhos, vinhos que obrigado meu Deus de tão bons e paisagem que explicam por que portugueses e espanhóis lutaram tanto pela Cisplatina.