Demóstenes, o Fantástico da Globo e a Dieta Sadia

Demóstenes Torres, Thiago Agelune e Caio Alcântara: advogados | Foto: Jornal Opção

Por Nilson Gomes-Carneiro

A Justiça Federal (JF) anulou inteiramente, nesta semana, as decisões da Comarca de Cachoeira Alta (GO) acerca da operação “Dieta Sadia”, realizada em Goiás e Minas Gerais no início de dezembro de 2019. Os advogados Demóstenes Torres, Caio Alcântara e Thiago Agelune, que atuaram no caso, apontam que a 11ª Vara Federal “declarou a ilicitude de todas as provas”. Antes, os mesmos defensores haviam conseguido que o Superior Tribunal de Justiça reconhecesse “a incompetência da Justiça Estadual” e enviasse os autos para a JF.

“Dieta Sadia” foi a grande atração do programa “Fantástico”, da TV Globo, em 15 de dezembro de 2019, que ecoou as acusações presentes nos principais veículos de comunicação: um grupo, que na denúncia chegou a 30 pessoas, estaria importado do exterior, principalmente do Paraguai, substâncias usadas em remédios tomados com o objetivo de perder peso. Os medicamentos, vendidos de Norte a Sul do Brasil, chegavam até à Europa. Repórteres do “Fantástico” ouviram especialistas nacionais e de Portugal, que alertaram para os perigos das tentativas de emagrecer sem os procedimentos padrões da ciência.

Inicialmente, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, alegando, em síntese, ter ocorrido, no curso das investigações, violação ao juízo natural, dada a incompetência absoluta do juízo da Comarca de Cachoeira Alta para o deferimento das medidas cautelares requeridas pelo Ministério Público.

O principal argumento da impetração e das manifestações subsequentes dos advogados foi de que, desde o início, já se sabia da internacionalidade do delito objeto do inquérito. Assim, o caso não comportaria a aplicação da teoria do juízo aparente, mas a competência deveria ser aferia pelo “fato suspeitado”, conforme apontou o saudoso ministro Sepúlveda Pertence no HC 81260/ES (*).

O TJGO reconheceu a incompetência absoluta do Juízo Estadual e determinou a remessa dos autos à Justiça Federal, sem, no entanto, manifestar-se sobre a validade das provas.

O Juízo Federal, então, suscitou conflito negativo de competência, pois entendeu não existirem elementos que justificassem a competência da Justiça Federal. O caso foi para a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que, por maioria, conforme voto divergente lavrado pelo ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu pela competência da Justiça Federal (CC 188135/GO), pois as circunstâncias extraídas do caderno investigatório denotariam a presença de “indícios suficientes para o estabelecimento da competência federal, independentemente de a imputação penal contida na denúncia mencionar ou não a conduta de importar descrita no art. 273, § 1º, do Código Penal” (**).

Recebidos novamente os autos na 11ª Vara Federal da Seção Judiciária de Goiás, o juiz federal André Dias Irigon, após nova manifestação da defesa, observou “que os indícios da transnacionalidade da conduta restaram evidenciados desde o início das investigações, ou seja, é inegável o prévio conhecimento pelas autoridades da importação dos produtos ou das matérias-primas tanto no início das investigações quanto nas decisões jurisdicionais proferidas em seu curso, motivo pelo qual a teoria do juízo aparente não é aplicável ao presente caso”.

Assim, magistrado determinou “a) a anulação dos atos decisórios proferidos pelo juízo da Comarca de Cachoeira Alta/GO no curso da investigação, como interceptações telefônicas, medidas de busca e apreensão, quebras de sigilo bancário, bloqueio de bens, além do recebimento da denúncia pela Vara dos Feitos Relativos a Delitos Praticados por Organização Criminosa e de Lavagem de Capitais ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores, nos termos do art. 567 do Código de Processo Penal; b) o desentranhamento dos autos de todas as provas decorrentes que derivem dos atos jurisdicionais ora impugnados, nos termos do art. 157 do Código de Processo Penal”.

Esclarece-se o conteúdo do art. 157 do CPP: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Exatamente o que ocorreu com a Dieta Sadia, atração do Fantástico perto do Natal de quatro anos atrás.

Explicando os textos com votos de dois ministros

(*) Trecho de relatório de 2002 feito para outro caso pelo ministro Sepúlveda Pertence, que morreu no dia 2 de julho de 2023:

“O problema da identificação do juízo competente se põe de imediato, também, com relação a tais medidas cautelares pré-processuais – sejam elas de caráter propriamente jurisdicional ou administrativo, ditas de jurisdição voluntária – mas em momento no qual ainda não se pode partir – no que tange à competência material -, do elemento decisivo de sua determinação para o processo, que é o conteúdo da denúncia. Aí, parece claro, o ponto de partida para a fixação da competência – não podendo ser o fato imputado, que só a denúncia, eventual e futura, precisará – haverá de ser o fato suspeitado, vale dizer, o objeto do inquérito policial em curso” (STF, HC 81.260/ES, Tribunal Pleno, DJe de 19/4/2002).

(**) Trecho do voto do ministro Rogério Schietti:

“Ao analisar detidamente dos autos, observo que os indícios da transnacionalidade das condutas delituosas imputadas aos acusados parecem devidamente evidenciados, motivo pelo qual peço vênia para divergir das conclusões da eminente Ministra Laurita Vaz para estabelecer a competência da Justiça federal. Deveras, os indícios concretos acerca da transnacionalidade podem ser verificados de algumas situações expostas durante a persecução penal, as quais ficaram registradas no acórdão proferido pelo Tribunal de origem (Juízo suscitado), nestes termos: ‘Da análise dos documentos acostado aos autos, ressai indícios concretos de transnacionalidade da conduta, em tese, perpetrada pelos pacientes. Isso porque, durante as investigações, apurou-se que um dos princípios ativos utilizados na fabricação de medicamentos para emagrecimento, sem registro ou a devida fiscalização dos órgãos de vigilância sanitária competente, tratava-se de sibutramina trazida do Paraguai por integrantes da organização criminosa. Senão vejamos. […] estão sendo utilizados na manufatura, é trazida em parte, do Paraguai, sendo o transporte, realizado por alguns dos elencados na investigação, enquanto outros fazem o serviço de acompanhamento/’batedores’, que avisam a presença da polícia, onde recebem um valor pelo serviço de ‘escolta’. Ainda, no deferimento de quebra de sigilo de comunicação telefônica, o juiz singular, mencionou que, ‘Consta, ainda, que, em diligências investigatórias, apurou-se que a organização criminosa adquire o princípio ativo utilizado na produção – anfetamina inibidora de apetite, sibutramina no Paraguai, sendo transportado por ‘batedores’, diretamente para o laboratório clandestino, possivelmente, situado na propriedade rural localizada há, aproximadamente, 9 km do centro da cidade de Cachoeira Alta-GO, na estada vicinal à esquerda da rodovia GO-174, localizada nas seguintes coordenadas geográficas 18.647799–50.9665149’. Também, em pedido de busca e apreensão domiciliar, o representante do Ministério Público, individualizou a conduta de um dos integrantes da organização criminosa que, supostamente, os pacientes fazem parte, nos seguintes termos, […] – “batedor” do transporte de insumos (anfetaminas) vindos do Paraguai e auxiliar do pai’”.

Continua o ministro, em seu voto:

“Como se observa, muito embora a denúncia afirme ser desconhecida a origem das matérias-primas utilizadas pela organização criminosa para a produção de medicamentos – o que é perfeitamente compreensível, porque não ficou claramente evidenciado de qual local específico elas viriam –, não há como negar a existência de indícios de que essas matérias-primas tenham origem de algum lugar situado no Paraguai, até mesmo pela narrativa de que seriam utilizados ‘batedores’ para assegurar o êxito do transporte.

[…]

Embora o Juízo suscitante afirme, após o exame minucioso dos cadernos investigativos (Inquéritos Policiais ns. 242/2019, 243/2019, 244/2019, 245/2019, 246/2019 e 247/2019), que não foi possível identificar a existência de nenhum elemento de informação objetivo suficiente para a atrair a competência da Justiça federal, assim o fez a fim de justificar a inexistência de imputação na denúncia em relação à conduta consistente em “importar” produto destinado a fins terapêuticos.

Em outras palavras, malgrado a investigação não haja logrado demonstrar, estanque de dúvidas, que houve a importação dos produtos ou das matérias-primas, a ponto de justificar a imputação penal dessa conduta na denúncia, também não se mostrou possível desprezar o fato de que houve o reconhecimento da existência de referências à aquisição de insumos no Paraguai. É o que se infere das seguintes passagens (fls. 3.835-3.836): […]

Ademais, como lembrado em memoriais trazidos pelos interessados, às fls. 8.992-9.005, a existência desses indícios pode ser também reforçada pelo fato de que a própria representação formulada pelo Ministério Público, durante as investigações, para a quebra do sigilo bancário e de bloqueio de bens dos acusados lastreou-se na possível prática de contrabando de anfetaminas inibidoras de apetite oriundas do Paraguai (especificamente à fl. 8.995). Ou seja, todos os indícios indicavam que esses produtos viriam do Paraguai”.

 

Nilson Gomes-Carneiro é advogado.