Ex-ministro da Casa Civil lutou pela liberdade do país, mas rejeitou a própria pois moeda de troca tinha a face da traição, escreve Demóstenes Torres
O amigo Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, colega articulista aqui no Poder360, ficou comigo na época em que os ratos saíram dos esgotos para me acusar. Foi meu advogado –aliás, o melhor que alguém pode contratar. “Boa tarde, Kakay”, ouvimos quando chegamos para almoçar em seu restaurante, em Brasília, na semana passada. A saudação era de um astro da política sul-americana, José Dirceu de Oliveira e Silva, respeitado pela esquerda do continente, temido pela direita de qualquer lugar.
Nos quase 10 anos em que fui senador, José Dirceu e seu então chefe, Lula da Silva, se revezavam como protagonistas de meus pronunciamentos na tribuna e nas comissões dia sim, outro também. Sempre ácidos, sempre contra.
Já dissertei neste jornal digital sobre o estoicismo, movimento criado pelo filósofo grego Zenão, da ilha de Chipre. Faltou mencionar um símbolo em carne e osso. Pois ele estava em mesa próxima à nossa, acompanhado do filho, José Carlos Becker, o Zeca Dirceu, no 4º mandato de deputado federal, líder do PT na Câmara.
Dirceu, o pai, era a pessoa mais poderosa do Brasil e não reagia às provocações. Símbolo maior do PT. O próprio Lula o chamava de capitão do time da Esplanada. Para a imprensa, “o” superministro. Nada se decidia sem passar pela Casa Civil, chefiada por ele, que aguentava calado as incessantes surras. O estrategista que tornou Lula palatável ao eleitor fez seu 1º mandato inteligível ao cidadão. Portanto, suas ideias foram decisivas para as vitórias em 2002 e 2006, quando já estava fora da equipe e dentro de um vendaval.
Ali, na hora da refeição, o prato acabou sendo a conjuntura econômica do país. Nem imagino o que combinara de conversar com o filho, mas aceitou a companhia do anfitrião e seu convidado. Ouvimos verdades. José Dirceu mostrou profundo conhecimento das atividades produtivas das 5 regiões. Entende tudo de commodities. Tamanho das safras de grãos e cana-de-açúcar. Preço do petróleo na África, do aço na China, do nióbio em Nova York. Extração de lítio no Vale do Jequitinhonha, na sua Minas Gerais natal.
Do Congresso? Recita nome por nome de deputados e senadores. Siglas. Opiniões.
E que opiniões! Centradas. Qualificadas.
Enfim, agora é outra a revolução do menino da Maria Antônia, a rua de São Paulo em que estudantes enfrentaram militares nos tempos da ditadura. Sobrou “apenas” a História do Brasil, de que faz parte desde antes de ser pai. E a história tem episódios rocambolescos, nenhum comparável ao que deu origem ao líder do PT na Câmara.
Paranaense de Cruzeiro do Oeste, Zeca nasceu filho de Clara Becker e Carlos Henrique Gouveia de Melo, um paulista de Guaratinguetá recém-chegado à região. Ao jornal Folha de S.Paulo, Clara elogiou: “Carlos era ótimo marido. Não era mulherengo, não bebia, não fumava, não saía à noite, ajudava na louça, eu lavava e ele enxugava”. Enfim, “o marido que toda mulher quer”.
O economista Carlos chegou a Cruzeiro em 1975, depois de brigar com a família judia em São Paulo. Começou a namorar Clara, que tinha uma loja, e montou a sua, o Magazine do Homem. Os amigos locais o apelidaram de Pedro Caroço, que na música “Severina Xique-Xique”, cantada por Genival Lacerda, fica de olho na proprietária de uma butique. Em 1978, Clara deu à luz José Carlos. No ano seguinte, saiu a Lei de Anistia.
Caroço chamou Clara e confessou: inventara Carlos Henrique, seu nome era José Dirceu, viera de Cuba onde esteve exilado depois de companheiros de luta armada sequestrarem o embaixador dos Estados Unidos e permutarem-no por ele e mais 14. Como veio parar em Cruzeiro? Levado por um amigo, advogado na vizinha Umuarama. Como ninguém o reconhecia? Tá vendo esse nariz de tucano? Cirurgia. Os olhos japonesados? Plástica também. Anistiado, retornou a Havana, desfez as operações, as políticas e as do rosto, e voltou oficialmente ao Brasil, com a cara de antes e a coragem de sempre.
Se Carlos era um bom marido, Clara precisava conhecer o sogro real, Castorino. Todos precisávamos. Era “o” cara, título que Barack Obama daria a Lula em 2009, pois o pai do Zé falecera uma década antes.
No discurso de posse na Casa Civil, em 2003, lembrou-se de Clara e Castorino. Agradeceu a uma e desmanchou-se pelo outro, merecidamente: o pai trabalhou quase meio século num mesmo ofício e se aposentou sem sequer ter casa para morar. Se fosse como definia Castorino, “conservador e udenista”, Zé teria obtido mais refresco no Congresso, ao menos de minha parte, e em ambos não restou mágoa.
A Terra gira para a maioria e dá cambalhotas para sujeitos como José Dirceu, que se ilumina com o Sol e dispõe da Lua permanentemente cheia, pois cultiva luz própria. Foi preso na ditadura e na democracia, em ambas por causa de política. Empreendedor. Congressista. Graúdo no Executivo. Cassado. Novamente, está no auge, se não em cargos, ao menos na capacidade intelectual. E física.
Em incrível forma para quem conta 77 anos de luta, exibe voz firme, passos determinados e algo que o público do restaurante, como o do restante do país, deve aplaudir: a retidão de caráter provada em não ser dedo-duro.
Seu mundo foi abaixo, Sol e Lua em eclipse total, e as autoridades não conseguiram um “a” do depoente José Dirceu de Oliveira e Silva. Pedro Caroço estava de olho nela, a biografia, que jamais se livra de nódoas como a delação. A memória de Castorino e a rotina dos filhos e da netinha Camila permanecerão incólumes graças à têmpera do que não se verga. Batalhou pela liberdade do país, mas rejeitou a própria pois a moeda de troca tinha a face da traição.
O Zé que está aqui do outro lado da mesa no restaurante do Kakay nunca trocou de lado. Castorino soube criar, Zeca sabe aprender, espero que a equipe do governo federal saiba aproveitar tão formidável legado e extermine a zica deste início de 3º mandato, porque Lula está de olho é nela, a reeleição.
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