Foi publicado pela Editora Saraiva o novo livro de Cezar Roberto Bitencourt, “Reforma Penal da Lei Anticrime”. Bitencourt é considerado verdadeiro ícone do direito penal brasileiro. Procurador de Justiça aposentado e hoje advogado de alto coturno, desenvolveu esta obra ansiosamente aguardada pela classe jurídica.
Para prefaciá-la, convocou Demóstenes Torres, também Procurador de Justiça aposentado e advogado criminalista. Bitencourt diz, gentilmente, no autógrafo do primeiro exemplar, que “Demóstenes conseguiu fazer com que o seu texto fosse mais importante que o próprio livro.”
São 4 (quatro) páginas que merecem ser lidas:
PREFÁCIO
Marcus Vitruvius Pollio, o Vitrúvio, conhecido arquiteto romano que viveu no século I a.C., foi reencontrado no Renascimento porque sua obra em dez volumes, chamada De Architectura, é o único tratado europeu que chegou aos nossos dias. Desde então, foi fonte inspiradora da arquitetura, urbanismo, hidráulica e engenharia. Para ele, qualquer obra deveria se basear em três conceitos: utilidade, beleza e solidez.
Cezar Bitencourt, como já o fizera antes, exemplificativamente, em Tratado de Direito Penal, Tratado de Direito Penal econômico e Falência da pena de prisão, faz agora uma análise profunda da reforma penal introduzida pela Lei n. 13.694/2019 e, ainda, brinda os estudiosos com uma extensão em seus estudos da Lei n. 13.968/2019, que modifica o art. 122 do Código Penal, para alterar o crime de incitação ao suicídio, incluindo as condutas de induzir ou instigar a automutilação, bem como a de prestar auxílio a quem a pratique.
A Lei n. 13.694, sancionada no dia 24 de dezembro de 2019, é fruto do movimento político que culminou na derrocada da ex-Presidente da República Dilma Rousseff. Os escândalos de corrupção que vieram a lume pela “Operação Lava Jato” insuflaram a população, já ressentida pelo histórico senso comum de impunidade. Ampliada a pressão popular, por meio das redes sociais, possibilitaram-se o uso político e o contágio moralista da citada operação, dando contornos mais amplos ao ressentimento preexistente.
O caos instaurado pelos inúmeros problemas sociais surgidos a partir da queda do “Império da Esquerda”, aliado à descrença das massas, acarretou a fragilização do Direito. Governava, então, o “lavajatismo”, como ideologia “legitimada” numa suposta impunidade sistêmica, a justificar os incontáveis abusos praticados na condução dos processos. Porém, na verdade, tratava-se, nada mais, nada menos, de um ingênuo punitivismo messiânico, já conhecido da história.
Tais fatos influenciaram as eleições atípicas de 2018, quando se elegeu o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro. A tônica era a premência da ascensão da “nova política”, que, curiosamente, embora sustentasse práticas opostas, mantinha com o seu antagonista o extremismo como denominador comum. Só que na defesa de endurecimento das penas, encarceramento desmesurado e sumarização do processo como política criminal.
Concomitantemente à eclosão desse conjunto de emoções difusas que dominaram o debate público, a doutrina e os tribunais esfacelavam-se num “jurisprudencialismo” titubeante. Os livros, que deveriam auxiliar a construção do bom direito, não passavam de coletâneas de julgados sem qualquer juízo crítico profundo, num ato de sucumbência e adesão ao movimento. Não importavam mais os ensinamentos dos grandes mestres, mas apenas os fragmentários sentidos jurídicos que eram expressados pelas cortes de justiça.
A debilidade do direito, proporcionada pelo populismo penal e pela marginalização da doutrina no discurso jurídico, permitiu assanhamentos autoritários das mais variadas espécies. Tanto na interpretação dos textos pelos tribunais, deturpando-se, por exemplo, o sentido de “trânsito em julgado” com o fim de permitir a prisão após o julgamento em segunda instância, quanto na produção de textos normativos, como alguns dispositivos presentes na Lei de que trata esta obra.
A partir dessa diagnose, o presente livro que ora prefacio pode ser classificado como doutrina da resistência, pois em nenhum momento o seu autor sucumbe à tentação de meramente reproduzir entendimentos pretorianos sobre os diversos problemas enfrentados. De forma totalmente contrária, Cezar Bitencourt traz ao seu leitor análise substanciosa das alterações realizadas no Código Penal, produzindo exames meticulosos e precisos, sempre à luz da Constituição da República.
A obra se estrutura em dez capítulos, nos quais são abordadas todas as alterações introduzidas. Em cada parte, o autor, além das novidades legislativas, expõe exaustivamente o assunto com um relato histórico de inegável importância para a compreensão dos temas tratados.
Ilustram bem o que exponho os Capítulos III (Prisão automática decorrente de condenação pelo Tribunal do Júri), IV (Alterações no livramento condicional) e V (Confisco de bens travestido de efeito da condenação). Nesses pontos específicos, é possível perceber que Cezar Bitencourt investiga o texto sempre o submetendo ao escrutínio constitucional, como o faz ao escarafunchar o art. 91-A. A conclusão, dada já no início do Capítulo V, vem acompanhada de exposição minuciosa dos desacertos do legislador penal acerca do confisco de bens.
No mesmo sentido, repele a constitucionalidade da norma que autoriza a prisão do condenado pelo Tribunal do Júri, já em primeira instância, quando a pena aplicada pelo juiz for igual ou superior a quinze anos. Note-se que, nesse aspecto, viola-se a soberania do veredito do jurado, já que o juiz de direito passa a ter maior importância no julgamento do que o próprio corpo de sentença, em decorrência da reprimenda elevada. Preciso, como de hábito, destaca que o “’trânsito em julgado’ é um instituto processual com conteúdo especifico, significado próprio e conceito inquestionável, não admitindo alteração ou relativização de nenhuma natureza, e, ainda que queira alterar a sua definição, continuará sempre significando ‘decisão final da qual não caiba mais recurso’”.
Também fruto do “lavajatismo”, o agigantamento do Ministério Público – órgão que eu e Cezar Bitencourt tivemos, por décadas, a honra de integrar – é assinalado nesta obra quando se trata do acordo de persecução penal, dentro do Capítulo VI (Causas modificadoras e novas causas suspensivas da prescrição). Constata-se o esvaziamento do Poder Judiciário a partir da transferência, em termos práticos, do exercício jurisdicional para o Parquet, já que magistrados deverão decidir minguados dez por cento dos delitos elencados no Código Penal.
Ademais, não se pode deixar de destacar a formação humanística do autor, exposta na obra quando se insurge à política de encarceramento, ao criticar a mudança da expressão “comportamento satisfatório” para “bom comportamento”, como requisito subjetivo para o livramento condicional. Conclui acertadamente, neste ponto, que a “nova previsão legal […], além de muito mais grave, dificilmente poderá ser cumprida pelos detentos, enquanto o sistema penitenciário permanecer nas condições sub-humanas, superlotado e sem condições de trabalho em seu interior, como é a realidade atual em mais de noventa por cento das casas prisionais deste país”.
Outra acerba avaliação nesse sentido é elaborada no Capítulo VII. Nele, vaticina-se que o novo diploma, quando altera as disposições da Lei de Execução Penal e exige o cumprimento de 70% da pena nos casos como o de reincidência em crimes hediondos, vedado o livramento condicional, acaba por impedir a individualização da pena; também obsta, conforme observa o autor, o direito à progressão de regimes – “considerado pelo STF (HC 82.959) como uma das garantias asseguradas pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XLVI” – e a ressocialização do condenado. Igualmente digno de nota é o recrudescimento do regime disciplinar diferenciado, “já aberrante, cruel e degradante”, transformado para pior, mais grave e impiedoso pela nova Lei, que aumenta sua duração máxima de um para dois anos. Dentre outras atrocidades, é destacada a submissão do detento ao “RDD” quando lhe recaírem “fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta grave” em claro flerte com o direito penal do autor, e não do fato, típico do nacional-socialismo alemão.
Não escapam do viés crítico do livro trechos em que a Lei n. 13.694 demonstra pouca técnica metodológica, como no induzimento, instigação e auxilio a suicídio ou automutilação – novo texto do art. 122 do Código Penal, tratado no Capitulo IX. Verificou-se, em seu § 6º, a “infeliz transformação de um crime tentado em outro consumado mais grave”, uma vez que, conforme explica o doutrinador, “se o autor do crime de ‘estimular’ a vítima a suicidar-se ou se automutilar, consumando-se estará sujeito a uma pena máxima de seis anos de reclusão. No entanto, paradoxalmente, não o consumando, mas resultando a vítima com lesão grave ou gravíssima, nos termos do § 6º, estará sujeito a uma pena máxima de oito anos de reclusão (art. 129, § 2º)”.
Vitrúvio ficou famoso em tempos modernos mais pelo desenho que Leonardo Da Vinci elaborou da sua descrição do homem perfeito, que, de fato, superou em beleza e harmonia os desenhos dos também renascentistas Francesco di Giorgio e Giacomo Andrea. Mas Cezar Bitencourt insistiu, com a beleza de sua escrita, na edificação útil e sólida de uma obra que servirá para o estudo de amantes do direito. Deixa, no mínimo, duas pedras fundamentais: resistir ao sepultamento da doutrina e construir uma dogmática integra e coerente, expurgando os fantasmas da política e do moralismo.
Demóstenes Torres
Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de Goiás. Foi Senador da República (2003-2012). Advogado, atua com ênfase em Direito Penal, Processo Penal e Direito Constitucional.
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