Avião ia cair, pânico geral, rezamos para Padre Pio
Os estoicos talvez sejam o maior exemplo de superação. Muitos deles caíram em dificuldades infernais e se reergueram. O medo fazia parte de suas rotinas.
Famoso autor do estoicismo, o espanhol Sêneca afirmava que quem não tinha medo não era corajoso, mas doente, amalucado. Nas lições do filósofo, submetidas a interpretação extensiva, tão na moda atualmente no direito constitucional, seria perigoso ficar perto de João Sem Medo (Saldanha, Calmon, o Duque da Borgonha), Juscelino Kubitschek (que “Deus poupou do sentimento do medo”) ou de quem segue o Velho Testamento (“Não tenha medo, pois sou o seu Deus”, Isaías 41:10). Alguém sem medo seria capaz de grandes inconsequências.
Mas, diante do medo, como agir? Com moderação, sem afagá-lo, driblá-lo.
O Maior de Todos os Homens, nascido 4 anos depois de Sêneca, no extremo contrário do império romano, sentiu um medo tão extraordinário que, chegada a Sua hora, mesmo sabendo que viera à Terra cumprir uma missão, “suou como gotas grossas de sangue”.
(Parênteses para contar a primeira experiência pessoal do dia. Uma vez, em Jerusalém, diante do secretário-geral do arcebispado latino, fluente em 17 línguas e se arriscando em outras tantas, caí na bobagem de dizer que Jesus suara sangue no Horto das Oliveiras. O poliglota me corrigiu nos trocentos idiomas, ressaltando o “como” e alertando: se Bíblias mundo afora foram traduzidas erroneamente, seria bom que as revisássemos.)
De qualquer forma, estava lá o “afasta de mim esse cálice”, o modo sereno de se distanciar do medo.
Sempre tive uma devoção inexplicável pelo italiano Padre Pio, há 20 anos São Pio de Pietrelcina. Digo inexplicável porque só o conhecia de um filme e um livro de seus admiradores que propagavam feitos, inclusive milagres. Depois, li o inquérito em que a cúria romana o absolvera da acusação de charlatanismo. Foi desterrado e continuou sua trajetória evangelizadora em San Giovanni Rotondo, onde morreu no final dos anos 1960. Recebeu os estigmas de Cristo e com esse sofrimento conviveu sob calúnias indizíveis. Até o fim foi caridoso, admirado e seguido por multidões de fiéis.
Surpreendi-me com sua popularidade na Itália, antes mesmo de o Papa número 1 de nossos tempos e templos, João Paulo 2º, beatificá-lo e torná-lo santo. Por onde passava, lá estava o retrato de Padre Pio, sua imagem pintada, sua medalha. Era assim em antiquários, lojas, bares e até num local pitoresco, a entrada da belíssima Grotta Azzurra, caverna na Ilha de Capri, sul da Itália.
No início dos anos 2000, quando descia de Roma para a Costa Amalfitana numa van, desviei inexplicavelmente o roteiro, sob protestos gerais dos companheiros de viagem. Fui a San Giovanni Rotondo, a fim de visitar o túmulo de Padre Pio e ver as famosas luvas que usava para ocultar as feridas nas mãos.
Desde criança, tinha medo de “assombração”. Meu pai era um tremendo contador de “causos”. Todos nós, seus filhos e público vizinho, ouvíamos Seu Avelomar tão atentos quanto a novelas ou a Antônio Porto nos jogos da Seleção Brasileira de futebol. Muitas narrativas eram histórias dele com o sobrenatural, que minha paúra convertia em sonhos estapafúrdios. Quando fui viver com Flávia, disse-lhe:
“Entre vários, tenho um defeito peculiar”
E falei de meus pesadelos, dos gritos quando despertava e de acordar totalmente suado. Alegrou-me:
“Isso não é defeito”
Prometeu me tolerar. Cumpriu.
No episódio de maior efervescência da minha vida, quando Flávia não estava, enchia de gente o quarto para tentar dormir, e de nada me adiantava. Havia ataque pior que qualquer era dos seres sobrenaturais. Para piorar, um psiquiatra receitou um remédio que me deixava acordado de madrugada e parecendo zumbi durante o dia. Não suportando a dor, num abril despedaçado, em Brasília, decidi-me pelo gesto extremo. Antes, deitei na cama, encolhido e pálido, um Demóstenes Com Medo. Não sei se adormeci ou fiquei em transe, mas o fato é que fui atacado pelas piores figuras demoníacas que alguém possa imaginar. Se à época ainda tivesse cabelo, ficaria com todos os fios erguidos. Padre Pio veio em meu socorro com seu cheiro adorável (muitos imaginavam que usasse perfume, mas era sua característica, o cheiro divino) e excomungou a todos que me apavoravam. Fui revigorado pelo que ele me disse e pelo que fez.
Nunca mais tive medo de nada. Enfrento de peito aberto qualquer adversidade. E o melhor de tudo: me livrei para sempre dos pesadelos. Menos dos reais.
Sexta-feira passada, 17.fev.2023, eu e Flávia embarcamos em Miami com destino a Providenciales, principal povoação das ilhas Turcks & Caicos, e só não conto que é onde estamos para não dar spoiler. Vinte minutos no ar e o avião começou a baixar exageradamente. Espantei-me, porque ainda faltava boa hora e meia para o pouso. De repente, o comandante anunciou que havia um problema desconhecido e teríamos que voltar ao local de partida. Alvoroço interno. Temor generalizado. Lamentos nos idiomas exibidos pelo secretário-geral do arcebispado latino em Jerusalém.
Flávia me perguntou:
“Vamos cair?”
Para consolá-la, vesti figurativamente a capa do Demóstenes Sem Medo e respondi que não. Não era ausência de temor, mas presença da expertise em apuros. Tenho milhares de horas de voo em aeronaves minúsculas. Só não voei até hoje em aeromodelo. E centenas de minutos aflitivos lá em cima –às vezes, nem tão em cima assim, como naquele momento, em que estávamos nos aproximando das águas azuis do Caribe.
Errar a pista de pouso? Sim, já ocorreu comigo. Sair da pista e entrar no mato? Também. Monomotor perdê-lo? Está no currículo. E bimotor perder os dois? Aconteceu próximo ao aeroporto de Caldas Novas. O piloto conseguiu pousar, mas o aviãozinho ficou bastante danificado e um passageiro, então deputado federal, passou a ter problemas insanáveis de coluna.
Acalmei Flávia explicando-lhe que não estávamos mergulhando no indescritível mar azul-turquesa. Íamos em frente. Baixo, porém em frente. Os comissários de bordo, que deveriam acalmar os passageiros, haviam sumido. Crescia a torre de babel de lamúrias e choros. Até que enfim apareceu um tripulante. Estava todo urinado. Não conseguia conversar. Todavia, cumpriu dignamente sua tarefa. Apontava para o panfleto de instruções atrás de cada poltrona. Fez o gesto da mímica macabra que precede a queda: abraçar as pernas e deitar sobre elas. Para a eventualidade de sobrevivermos, indicou as saídas de emergência, para as quais deveríamos seguir correndo se o piloto repetisse o herói do Rio Hudson, Chesley Sully, e conseguisse pousar.
O pânico era geral. Desespero completo em todas as filas. Aí, Flávia me disse:
“Eu não queria morrer antes de ver minha filha formada em Medicina”
Maria Fernanda, minha enteada, está no último ano da faculdade.
Peguei sua mão e a convidei:
“Vamos rezar para Padre Pio”
Crê quem quer. Na mesma hora, o comandante comunicou que detectara o problema, a pane era elétrica e seria contornada. As lágrimas brotaram em grande parte das pessoas. Voamos de volta. Perdemos o dia de passeio, ganhamos a vida para passear pelos sete mares, ir com Flávia à colação de grau de nossos bisnetos, sair ilesos de outros perrengues.
Devo mais uma a Padre Pio. Em sua devoção, preciso fazer uma capela humilde, como ele gostava, como todos deveríamos ser.
Artigo publicado originalmene no Poder360
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