O GIGANTE ADORMECIDO QUE SE RECUSA A LEVANTAR

Navios parados, empregos perdidos: o paradoxo da indústria naval brasileira Enquanto o Brasil sonha em gerar empregos e desenvolver sua indústria naval, a realidade é marcada por navios abandonados, burocracia e entraves que travam o setor — e impactam diretamente a economia do país. Nesta semana, durante a aproximação para o pouso no Aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, uma cena chamou a atenção: três grandes navios petroleiros, novos, mas abandonados, repousavam silenciosamente em um estaleiro vizinho ao aeroporto. Uma imagem que, para quem conhece a história do local, é ao mesmo tempo curiosa e emblemática.

Até pouco tempo atrás, o aeroporto se chamava Galeão, nome que remete à Praia do Galeão, situada na Ilha do Governador, onde o aeroporto está localizado. A origem do nome é histórica: no século XVII, ali havia um estaleiro da Marinha portuguesa onde se construíam e reparavam galeões — grandes embarcações usadas para guerra e comércio. Ou seja, o local carrega uma tradição naval centenária, um legado que parece parado no tempo. Desde a independência do Brasil, em 1822, o país construiu uma indústria naval robusta. É um setor que, além de estratégico para o desenvolvimento econômico, tem enorme potencial para gerar empregos com salários superiores aos de outras áreas, como o agronegócio.

Com capacidade técnica, espaço e mão de obra qualificada, o Brasil tem tudo para navegar rumo ao crescimento. Mas então, por que a indústria naval não decola? Navios parados e burocracia: o que está travando o setor? A resposta está diante dos nossos olhos, ou melhor, pela janela do avião. Dois dos três navios vistos no estaleiro da Ilha do Governador foram encomendados pela Transpetro, subsidiária da Petrobras, mas tiveram suas obras paralisadas durante a Operação Lava Jato.

Hoje, esses navios aguardam uma solução em meio a disputas envolvendo o BNDES, que já recebeu propostas para vendê-los, de empresas privadas, mas mantém as embarcações ali, deixando-as deteriorar. O banco deseja que a Transpetro assuma os navios para finalizá-los, mas o presidente da subsidiária, Sérgio Bacci, já declarou que isso não é economicamente viável — o custo para concluir essas embarcações ultrapassaria o valor de construir novas. Um dilema claro: a Transpetro é especialista em transporte, não em construção naval. Empresas e os desafios para navegar em águas turbulentas A gigante dinamarquesa Maersk, envolvida na operação Lava Jato e atualmente impedida de participar de licitações governamentais — inclusive com a Petrobras —, mostrou que sabe se adaptar ao complexo mercado brasileiro.

Para driblar as restrições, a empresa criou uma nova companhia, a Svitzer, que oficialmente não pertence à Maersk, mas sim ao seu proprietário, Robert Ugla. Administrada por um robusto departamento jurídico, a Svitzer vive às voltas com uma série de litígios, contando com um exército de advogados internos e terceirizados que supera até o número de comandantes de navios na empresa. Essa estratégia jurídica intensa permite que a empresa continue operando no país, mesmo que de forma limitada. No entanto, o reflexo dessa turbulência é visível: enquanto a Maersk navega com uma frota global de mais de 500 embarcações, no Brasil encontra-se construindo apenas quatro — menos de 1% do total — mostrando que seu apetite pelo mercado nacional está longe do ritmo que mantém no resto do mundo. A norueguesa DOF é uma verdadeira gigante dos mares, com operações espalhadas por quase todos os oceanos do mundo.

No entanto, é no Brasil que a empresa concentra seu maior interesse — cerca de 37% do seu faturamento vem do mercado brasileiro. Reconhecida internacionalmente, a DOF enfrenta hoje sérias dificuldades financeiras, que comprometem sua capacidade de obter crédito para investimentos, especialmente para construções, junto ao BNDES. Desde a deflagração da Operação Lava Jato, o BNDES implementou medidas mais rigorosas para a concessão de crédito ao setor de navegação. Dentre essas exigências, destaca-se a obrigatoriedade da apresentação de garantias reais equivalentes ao valor total pleiteado. Em termos práticos, isso significa que, para a liberação de um financiamento no montante de R$ 1 milhão, a empresa requerente deve comprovar a posse do mesmo valor, seja por meio de saldo em conta bancária ou por fiança bancária.

Esse novo cenário regulatório impõe uma barreira significativa ao acesso ao crédito, especialmente para empresas em situação financeira delicada, como é o caso da DOF. A dificuldade em apresentar as garantias exigidas inviabiliza a obtenção de recursos junto ao banco, limitando de forma expressiva a capacidade dessas companhias de renovar ou expandir suas frotas no mercado brasileiro. Diante desse contexto, a estratégia adotada pela DOF foi a constituição de um novo CNPJ — sem histórico de dívidas ou restrições — com o objetivo de buscar, junto a órgãos governamentais e empresas estatais, uma nova oportunidade de atuação, livre dos entraves associados à sua estrutura original. Diferentemente de abordagens mais controversas adotadas por outras empresas, como a SVITZER, a DOF, que não foi implicada diretamente na Lava Jato, tenta reconstruir sua posição no mercado por meio de uma separação institucional e jurídica de seu histórico financeiro adverso. Já a tradicional Wilson Sons, com 188 anos no Brasil e uma frota de quase 100 embarcações, está em dia com suas finanças e apta a conseguir crédito.

No entanto, após ser adquirida pela suíça MSC, conhecida por seus navios de cruzeiro, a empresa praticamente parou sua atividade de construção naval no país — reflexo da falta de interesse do novo controlador. O impacto na economia e no mercado de trabalho O Brasil enfrenta uma tempestade perfeita na indústria naval, e quem paga o preço é a população. A falta de construção nacional obriga o país a contratar embarcações estrangeiras, que cobram em dólar e utilizam tripulações internacionais. Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), 96% dos navios quetransportam petróleo no país são estrangeiros, contra apenas 4% de embarcações brasileiras — uma dependência que pesa no bolso do consumidor e limita o desenvolvimento do setor.

Caminhos para retomar o rumo Para que o Brasil volte a construir navios e gerar empregos, é urgente revisar os critérios de financiamento do BNDES, equiparando a indústria naval ao agronegócio, que recebe condições mais favoráveis. É necessário também incentivar a substituição das
embarcações estrangeiras por nacionais e criar leis que garantam a continuidade do trabalho nos estaleiros, evitando interrupções que prejudicam a economia de escala e a empregabilidade. O desafio é grande, mas o potencial é imenso. Se o Brasil conseguir destravar esses nós,
poderá retomar sua tradição marítima, fortalecer sua indústria e garantir um futuro melhor para milhares de trabalhadores e para a economia do país.